Entender Torre Pacheco

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Um grupo de jovens de origem magrebina agrediu com inusitada brutalidade um homem de 68 anos de idade em Torre Pacheco, região de Múrcia, no sul de Espanha. Não houve roubo. Nem haverá historial de animosidade entre agredido e agressores. A violência terá tido um só propósito: gravar o ataque e partilhá-lo nas redes sociais.

Fartos de estarem fartos, os moradores saíram à rua. Contaram com o apoio da comunidade cigana local. Nas palavras de um membro desta comunidade, o idoso agredido podia ser o pai ou o avô de qualquer residente, donde, perante o sucedido, não há diferenças entre ciganos e payos.

Depois então chegou a extrema-direita, que parasitou a batalha campal em curso.

Esta simples cronologia dos factos revela que, ao contrário do que foi noticiado pela comunicação social portuguesa, a realidade é muito mais complexa do que uma ‘caça ao imigrante’ promovida por turbas ultramontanas. Quem veja as nossas televisões, por muito boa vontade que tenha, jamais entenderá o que aconteceu em Torre Pacheco.

Aproveitando a boa vontade dos leitores do Diário de Notícias, afastemos o ruído quotidiano e olhemos para factores estruturais. Primeiro, os MENA, acrónimo de menores estrangeiros não acompanhados, um tema recorrente no debate público espanhol.

Falamos de jovens até aos 18 anos que chegam a Espanha sem pais ou tutores legais. São mais de 15.000, todos extracomunitários, a maioria marroquinos (68%) e do sexo masculino (96%). Juntam-se a estes outros tantos que ao atingir a maioridade mantêm a autorização de residência ou adquirem até a nacionalidade espanhola.

Boa parte chegou à costa mediterrânica de Espanha e aos arquipélagos das Baleares e das Canárias. Para que os custos financeiros e materiais do acolhimento não recaiam apenas sobre estas regiões, algumas sob elevada pressão migratória, o governo propôs que fossem distribuídos por todo o território, convocando os vários governos locais para um esforço que deve ser conjunto. Em surdina, outro argumento: a aglomeração destes jovens, muitos sem ocupação, parece favorecer comportamentos delitivos, ou pelo menos incivis.

Fazendo jus a uma longa tradição de xenofobia, os nacionalismos catalão e basco rejeitaram a proposta. Pedro Sánchez, dependente que está da Catalunha e do País Basco para governar, aceitou a falta de solidariedade.

Ou seja, duas das regiões mais ricas de Espanha põem-se fora. Como é fácil de entender, as restantes, entre as quais as mais pobres do país, não ficaram satisfeitas.

A xenofobia explica a postura catalã, mas, sendo justo, os números dão algum conforto ao sectarismo: dados da Dirección General de la Policía do governo autonómico da Catalunha, citados pelo El Mundo, revelam que, em 2024, 83% dos detidos por roubo e 91% dos detidos por furto em Barcelona são estrangeiros. Também aqui, em surdina: os MENA representarão uma fatia importante desta realidade.

Diga-se que a Catalunha é vítima de si própria. A princípios deste século, os nacionalistas da Convergència i Unió empenharam-se em receber imigração não falante de espanhol, em particular do Magrebe. O objectivo era cumprir uma tara identitária: se os imigrantes se aculturassem em língua catalã, sem nunca aprenderem castelhano, não só se avançaria na construção da nação, como, em teoria, se ganharia uma legião de votantes. Correu mal. Por isso, é irónico - e revoltante para o resto de Espanha - que, agora, a Catalunha se desentenda do assunto.

O segundo factor estrutural está nas relações bilaterais entre Madrid e Rabat. Eis o segredo mais mal guardado da política externa espanhola: Marrocos usa a imigração ilegal para pressionar Espanha - e, através desta, a União Europeia.

Viu-se bem em 2021, quando Marrocos abriu a fronteira em Ceuta, instigando a passagem descontrolada de milhares de pessoas, entre as quais muitas crianças, o que criou uma seríssima crise humanitária e diplomática. A razão? Uma represália por Espanha ter prestado cuidados hospitalares a Brahim Ghali, velho líder da Frente Polisário.

Mas Marrocos reservará um papel ainda mais pernicioso à imigração. Nas páginas do ABC, Taleb Alisalem, jovem escritor sarauí, defendeu que Espanha não tem problemas com a imigração; o problema está na forma como Marrocos a usa. Segundo Alisalem, Marrocos desenvolveu uma rede de controlo sobre a sua comunidade na Europa: associações culturais, mesquitas e redes de vigilância social e ideológica. O motivo será simples: “Marrocos infiltra a sua agenda usando parte da diáspora como arma de influência.” “Marrocos não imigra; Marrocos expande-se”, afirma. Para que esta projecção de poder externo funcione, há que impedir a integração dos imigrantes.

O escritor insta Espanha a agir: “Não podemos continuar a viver entre a chantagem diplomática e o complexo ideológico. Precisamos de proteger os bairros. Precisamos de monitorizar o que acontece dentro de certas mesquitas. Precisamos de exigir responsabilização. É preciso parar de confundir tolerância com submissão.”

É verdade que Taleb Alisalem é um activista sarauí. Deve ser lido com prudência. Contudo, a experiência dos últimos anos, bem como factos recentes em Torre Pacheco, recomenda que os seus argumentos não sejam descartados como o produto de um delírio faccioso.

Retratar o sucedido em Múrcia como um combate entre nacionais e estrangeiros favorece duas agendas políticas. Primeiro, a de Sánchez, cujo partido e governo estão imersos em ilegalidades várias e escândalos maiores. A ameaça da extrema-direita é a única bóia disponível para manter o governo à tona e ambicionar um resultado razoável nas próximas legislativas. As esquerdas radical e extrema aplaudem a estratégia. E claro, a nada disto é alheio o facto de Múrcia ser governada pelo Partido Popular, a principal força da oposição.

A segunda agenda beneficiada é a do VOX, a direita radical populista que vê com preocupação eleições no horizonte, já que não cresce de forma significativa nas sondagens. O relato de uma invasão de estrangeiros criminosos galvaniza as bases.

Em resumo, a esquerda e a direita radical apostam que fogo nas ruas dê votos nas urnas.

Por preguiça, ignorância ou militância, a imprensa portuguesa propagou uma versão politizada da realidade. A forma como se noticiou o caso não é fiel aos factos, além de ignorar por completo o contexto político e social que os condiciona.

É um erro pensar que os problemas começam e acabam na extrema-direita. Neste e noutros casos, mesmo que a retiremos da equação, os problemas continuarão todos no mesmo sítio.

Politólogo.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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