Ensino do Direito em Portugal: os números

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Os dados quantitativos, para uma pessoa de Direito, são sempre um mistério e uma fonte de surpresas – especialmente quando confirmam intuições que surgem por outras vias. Dando aulas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa há quase 24 anos, sempre me surpreendeu que não existisse uma licenciatura em Direito a sul de Lisboa, oferecida pelas universidades públicas. É certo que a população, a economia e os eleitores se concentram numa curta faixa litoral entre Setúbal e Viana do Castelo, mas isso não impediu, pelo contrário, no pós-25 de Abril, a criação de uma enorme rede de universidades e politécnicos espalhada pelo território e geradora de um efetivo acesso ao ensino superior, a formações pós-graduadas diversas e a um tecido de investigadores e de investigação associados à realidade de todo o País. Poder-se-á criticar até a falta de escala da rede ou a sua origem e desenvolvimento assente em critérios pouco racionais – mas é a que existe e seguramente tem contribuído alguma coisa para a formação do país semianalfabeto de 1974, para a fixação e até atração de população e para a vida coletiva de boa parte do território. E não é seguramente pelos salários pagos aos professores do ensino superior, com a sua perda de quase 20% de poder de compra na última década e meia, que o País entra em falência.

No entanto, o ensino público do Direito manteve-se sempre alheio à lógica de cobertura do País, recusando ir ao encontro dos estudantes. Abriram três novas faculdades públicas de Direito desde os anos 90, mas em Lisboa (Universidade Nova), Porto e Braga, complementares às históricas Universidades de Coimbra e de Lisboa. Existem apenas cinco licenciaturas públicas em Direito, com 1264 vagas anuais (2023/24), todas preenchidas, e com 870 destas em Lisboa e Coimbra – comparando, por exemplo, com as 16 licenciaturas em Economia, 26 em Gestão ou 16 em Engenharia Informática (apenas considerando as universidades públicas e excluindo aqui os politécnicos) estas efetivamente repartidas por todo o território continental e insular.

A minha consciência desta realidade e das suas consequências para o equilíbrio do País, para o bom funcionamento dos serviços públicos e para o provável lapso de planeamento e de justiça material em causa foi reforçada a partir de 2018, quando, então em funções dirigentes no Ministério da Justiça, me confrontei com a extrema dificuldade de captação de recursos humanos para os distritos a sul a Lisboa, especialmente Évora, Beja e Faro, desde juízes a oficiais de justiça. E fui falar com o Reitor da Universidade do Algarve, que não tinha então a noção desta realidade. Porque não se trata apenas de acolher estudantes da zona, o que já seria um dever, sem os onerar com o que significa estudar quatro ou cinco anos a 280 km da sua residência. Trata-se também de reter e acolher novos estudantes, que permaneçam depois em territórios onde essa sua formação é fundamental, para os serviços públicos e para a economia regional. Até porque estudar e aprender é um direito e não um privilégio e resulta a favor de toda a comunidade.

Os números dizem-nos que, bem ou mal, querendo-se isso ou o seu contrário, todas as Faculdades de Direito portuguesas são essencialmente escolas regionais, recebendo alunos de licenciatura do seu distrito ou dos distritos confinantes onde não existe oferta de ensino de Direito. As duas licenciaturas de Direito em Lisboa captam 74% (Universidade de Lisboa) e 71% (Universidade Nova) dos estudantes no distrito de Lisboa e nos distritos adjacentes. A Universidade do Porto tem 80% dos seus alunos provindos do Porto e dos distritos circundantes (e retirei desta percentagem os seus estudantes do distrito de Braga, 6%, onde existe licenciatura). A Universidade do Minho capta 68% dos estudantes em Braga, Viana do Castelo e Vila Real (e retirei a proporção provinda do Porto, que é de 22%, perfazendo 90%). Coimbra é mais ecuménica, mas mesmo assim tem 44% dos seus estudantes de Direito na mesma circunstância. Quantos estudantes de Évora, Beja ou Faro foram estudar em 2023 para o Porto ou Braga? Zero. O critério de escolha de onde estudar é o da proximidade à sua vida anterior. Todos os dados são da Direção-Geral do Ensino Superior.

Ora, uma mera redução de 5% das vagas nestas 5 licenciaturas (ou seja, 63 vagas) permitiria praticamente acomodar os estudantes dos distritos de Faro, Beja e Évora (foram 70 alunos colocados destes distritos em 2023/24 e seguramente muitos mais os candidatos) numa nova licenciatura a ser criada pela Universidade do Algarve ou até pela Universidade de Évora. Eu sei que o ideal universitário é cosmopolita, de novas vivências, conhecimentos, pessoas e espaços, de confronto com o desconhecido e de superação pessoal, pressupondo ir para fora das zonas, literalmente, de conforto – mas, devo dizer, isso não está a acontecer. E, se temos, por opção pública, um ensino universitário regionalizado, o Alentejo e o Algarve (e já nem falando dos Açores e da Madeira) estão a ser injustiçados, sem necessidade e sem critério que não o da conveniência dos professores e das instituições demasiado acomodadas e pouco disponíveis para uma lógica efetiva de acesso ao conhecimento e à formação.

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