Em defesa da ordem política internacional

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A agressão russa contra a Ucrânia, os crimes de guerra, o sofrimento e a destruição em Gaza, o Irão e Donald Trump, isso e quase só isso faz o pleno no espaço mediático internacional a cada dia. Pouco resta para outros factos, alguns deles indiscutivelmente importantes. Por exemplo, acaba de decorrer em Sevilha, esta semana, a 4.ª Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento, uma iniciativa crucial das Nações Unidas. Quantos cidadãos terão ouvido falar disso? Poucos, certamente, apesar dos temas serem fundamentais para preservar a vida e proteger a dignidade de todos.

Faziam parte da agenda o financiamento da luta contra a pobreza, no quadro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável 2015-2030, bem como a gestão da dívida pública dos países menos desenvolvidos e a sua reorientação para investimentos que facilitem o crescimento económico, o progresso social e a capacidade para resistir ao impacto das alterações climáticas. Também estava em discussão a reforma das instituições financeiras internacionais, do Banco Mundial e outras congéneres. Tudo num contexto mundial em que à volta de 3,4 mil milhões de pessoas vivem em países que, cada ano, gastam mais no reembolso da sua dívida pública do que na saúde dos seus cidadãos. Sem acesso a água potável, serão bem mais de 4,4 mil milhões de pessoas. E assim por diante.

Com a participação de cerca de 60 chefes de Estado e de Governo, e acima de 10 mil representantes de diversos sectores, incluindo as esferas não-governamentais e empresariais, a reunião não deveria ter passado despercebida. A única referência mediática, contudo, nos poucos casos em que tal aconteceu, foi para sublinhar a ausência dos EUA.

Significa tudo isso que o multilateralismo está ferido de morte? Penso que seria um erro afirmá-lo. A cena internacional é maior e mais diversa do que certos políticos pensam. Mesmo tendo em conta o peso dos EUA no sistema multilateral. E os desafios globais são cada vez mais prementes.

É verdade que Trump decidiu acabar com a USAID, a agência americana para o desenvolvimento internacional, fundada por John F. Kennedy há mais de 63 anos. Barack Obama considerou essa decisão uma tragédia. George W. Bush expressou o mesmo sentimento. Estou inteiramente de acordo.

Ao longo de décadas, e com base na minha experiência profissional, considerei a USAID como um parceiro de relevo para muitas das atividades da ONU. O seu encerramento é um ato de desumanidade, que, na história, ficará ligado às incongruências, à brutalidade e à ignorância primária que definem a visão política da presente liderança americana. Um exemplo: sem a contribuição financeira da USAID, o Programa Alimentar Mundial deixa de poder socorrer dezenas de milhões de africanos e outros na sua luta quotidiana contra a fome.

The Lancet, uma instituição com mais de dois séculos de existência e que produz relatórios altamente credíveis na área da saúde global, publicou esta semana, na mesma altura em que a agência americana foi oficialmente extinta, um estudo sobre as consequências altamente negativas da medida para os mais pobres do nosso planeta. A investigação, que foi financiada pelo governo espanhol em parceria com o Medical Research Council do Reino Unido e o programa EU Horizon Europe, revela, entre muitos outros aspetos, que os fundos provenientes da USAID contribuíram para importantes reduções da mortalidade, na ordem dos 65% por SIDA, de 51% pela malária e para metade a provocada por diversas outras doenças tropicais.

Esta breve referência a esse estudo visa sublinhar a gravidade da decisão e combater um certo tipo de radicalismo - a USAID não era uma extensão da CIA. É, igualmente, uma maneira de lembrar algo que hoje anda fora da atenção pública - a cooperação para o desenvolvimento é um princípio essencial da Carta das Nações Unidas, um pilar da paz internacional e um valor humanista que não pode ser ignorado.

Os adeptos da Realpolitik, pretensamente pragmática e seguramente amoral, que tanto têm bebido em Vladimir Putin, Benjamin Netanyahu e Donald Trump, para mencionar apenas três dos egocêntricos ora no poder, acharão ingénuas as referências aos valores do multilateralismo, da cooperação internacional e do humanismo. Respondo a isso com duas linhas. A primeira será para dizer que o endeusamento da Realpolitik, um conceito diferente do realismo político, é uma maneira disfarçada de fazer a apologia da força bruta ligada ao abuso do poder. A segunda servirá para lembrar que a prática política só faz sentido se estiver focada na defesa da vida, sobretudo a dos mais fracos, e na procura dos equilíbrios necessários para garantir a estabilidade do presente e a salvaguarda do futuro.

Politólogo/arabistawww.maghreb-machrek.pt

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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