Elogio de uma nova eternidade

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Leio as notícias sobre a exposição Polaroids, há dias inaugurada na Fundação Helmut Newton, em Berlim (patente até 25 de julho). Embora à distância, revisito esse capítulo singular da trajetória criativa do fotógrafo alemão, não um banal complemento de trabalho (as Polaroids feitas para preparar as fotografias propriamente ditas), mas uma derivação do olhar que adquiriu uma identidade própria e irredutível. A prova: o belíssimo álbum de 1992 intitulado, justamente, Polaroids (ed. Taschen), reeditado postumamente em 2011 (Newton faleceu em 2004, contava 83 anos).

No prefácio a esse álbum, a mulher de Newton, June Newton (1923-2021), também ela uma brilhante fotógrafa (com o pseudónimo Alice Springs), resume de forma paradoxal, familiar e poética, a função das chamadas fotografias instantâneas: “Muitas vezes, trazia as Polaroids tiradas durante o dia para me mostrar e perguntava-me: ‘Que achas?’. Como já tive oportunidade de escrever, ele era como Otelo a regressar a casa com os despojos da guerra para a sua Desdémona.”

Agora, num texto da apresentação da exposição, disponível no site da Fundação, recorda-se que as Polaroids, aliás, o “processo Polaroid” revolucionou as práticas fotográficas a partir do seu aparecimento na década de 1960. Como o texto refere, a Polaroid revelada em poucos segundos “pode ser vista como uma precursora da atual fotografia digital - não em termos técnicos, mas por causa da sua imediata acessibilidade.”

Polaroids de Helmut Newton e Charles Johnstone: imagens que resistem à passagem do tempo.
Polaroids de Helmut Newton e Charles Johnstone: imagens que resistem à passagem do tempo. FOTO: Direitos Reservados

O certo é que há nas Polaroids uma diferença material - Newton foi um dos primeiros a pressentir tal diferença - que envolve também qualquer coisa do domínio do simbólico. A Polaroid pode nascer de um gesto automático, seja ou não em contexto de trabalho profissional, em que se tenta “fixar” um instante que, naquele momento, não pode ser registado através de outro aparato técnico. Nesta perspetiva, o resultado pode ter tanto de maravilhoso, como de efémero: o instante “imperfeito” está, afinal, condenado pela usura no tempo (e haverá quem se recorde da degradação progressiva das cores de muitas Polaroids), o que não impede que nele possamos pressentir a emergência de uma nova medida da duração das imagens.

Para lá de Newton, as Polaroids têm sido matéria importante na relação de outros criadores com aquilo que fotografam. Exemplos? A alemã Pola Sieverding com os seus grandes planos de profissionais de luta livre; o italiano Maurizio Galimberti usando múltiplas Polaroids para construir “quadros” de muitos fragmentos (fazendo lembrar experiências de David Hockney ao longo da década de 1980); ou ainda a americana Sheila Metz- ner com os seus nus, masculinos e femininos, tocados por uma ambígua nostalgia romântica.

Estes nomes fazem parte, aliás, de uma lista de seis dezenas de fotógrafos - Ralph Gibson, Oliviero Toscani, William Wegman, etc. - representados na exposição de Berlim.

Polaroids de todos eles foram “restauradas” (será que a palavra faz sentido neste contexto?) e expostas, já não como restos de trabalho, antes como obras que conquistaram o direito a um futuro que não estava inscrito na sua origem técnica, e também na respetiva aplicação prática.

Há em tudo isto uma tentação moral, porventura moralista para alguns, sobretudo tendo em conta a aceleração de “pensamento” a que somos forçados pela maior parte das mensagens televisivas e publicitárias (sem esquecer, claro, o caótico espaço “social” da internet). O gesto artístico encerra uma lição que se demarca da conceção utilitária do tempo, assumindo-se como projeto de uma duração que, evitemos a modéstia, tende para o infinito. Na sua fragilidade, não apenas técnica, mas humana, uma Polaroid pode ser, assim, uma promessa de eternidade.

Jornalista

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