É onde estamos

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As 19.00 horas do dia 24 de dezembro têm uma certa estranheza. A maior parte está já confinada à Consoada, e os poucos que ainda circulam na rua parecem muitos: é o frenesim da última hora. Junto com os últimos, paro o carro no sinal luminoso da Paiva Couceiro e observo que em parte da Praça, mais exactamente dentro de uma iluminação de Natal à escala humana, estão mais de uma dezena de nepaleses a ouvir música e a dançar.

Na impossibilidade de me juntar a eles, mas motivado pela alegria da ocupação do espaço público de forma livre - cada vez mais raro nesta cidade - e celebrando que isso possa ser feito por todos, aproveitei os segundos de paragem no sinal luminoso para os filmar.

Uma mulher portuguesa a passear o seu filho, achou que a minha filmagem também lhe daria agência, pôs-se no campo de visão e vociferou: “Só vem é merda para aqui.” Imaginei portugueses como ela, naquele mesmo momento, em Nice, Paris, Lausana, Toronto e San José na Califórnia; reunidos na rua, à porta de cafés e nas associações recreativas, juntos a celebrar um Natal distante ao som do pimba, ranchos e techno.

Este apontamento de realidade não é de todo isolado de um contexto. Nos últimos tempos a comunidade de imigrantes em Portugal provenientes do subcontinente indiano: Bangladesh, Nepal, India e Paquistão, tem sido vítima de uma campanha de desinformação, em especial nas redes sociais. Fala-se de invasão, teorias de substituição, rumores de comportamentos obscenos, insegurança e conversão religiosa.

Uma prática de desumanização constante a que não é alheio o grupo ser constituído por pessoas não-brancas, não falarem originalmente português, não serem cristãs e terem as tarefas laborais menos consideradas. Essa desumanização tem efeitos muito concretos. Veja-se o caso dos GNR de Odemira (reincidentes) condenados por sequestro e ofensas à integridade física de migrantes; em novembro último dois portugueses atacaram uma casa de indianos perto de Setúbal com uma caçadeira (matando um e ferindo outro) - uma notícia sem honras de noticiário televisivo -, ou ainda a volumetria de vídeos de migrantes do subcontinente indiano agredidos por grupos de jovens em várias localidades do país.

Tendencialmente este seria o parágrafo de serviço público em que demonstraria como os imigrantes sustentam a nossa Segurança Social, como Portugal é dos países da Europa com menos imigrantes, como boa parte deles têm qualificações superiores, que todas as estatísticas desmentem uma relação entre imigração e insegurança, e o que o país pararia na sua ausência. Através de qualquer motor de busca o leitor pode encontrar informação credível que sustenta as minhas afirmações.

Contudo, não estou muito interessado em valores relativos, mas sim absolutos.
No campo neoliberal em que Portugal se encontra, a imigração só é possível porque dá grandes lucros às empresas e ao Estado. É o campo institucional que produz e usa os números favoráveis à imigração, mercantilizando vidas humanas, porque mantém toda uma estrutura que precariza essas pessoas, obrigando-as a ir para os locais mais insalubres da cidade (e, por isso, mais baratos), a aceitar condições de trabalho indignas, tornando-se permeáveis a máfias, dificultando a organização coletiva, mas sempre privilegiando o lucro dos patrões.

Como temos observado em toda a Europa, as consequências da degradação da vida de todos - incluindo os imigrantes - mostra como a exploração neoliberal anda de mãos dadas com as narrativas xenófobas e racistas. Empurram-se vários grupos para uma subproletarização, simulando e concretizando uma disputa por umas poucas regalias, para depois criar um alvo concreto, mas nunca o sistema político e económico em vigor.

Assim, a frieza relativa dos números só deve ser usada secundando a parte absoluta: uma vida justa para todo o ser humano. No mínimo, as narrativas de “integração” vigentes deviam garantir aos imigrantes que vivem em Portugal o mesmo que exigimos a todos nós que não somos imigrantes. Da habitação ao ócio, dos direitos políticos à qualificação laboral. Seria também um caminho para que Portugal também se integre num humanismo universal. Liberdade também é isso: criar condições para que não se apontem dedos.

Há 30 anos a argumentação suportada por esta crónica seria redundante, apenas se discutiria como fazer. Hoje, estas linhas são motivo de insulto e ameaça. É onde estamos.


Investigador

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