E a Europa vira à esquerda

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Na mesma semana em que o partido Trabalhista destronou os Conservadores no Reino Unido (14 anos depois e com uma vitória esmagadora), a esquerda venceu no país da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

O sistema político em França tem, como em cada país, características próprias. E essas particularidades estimulam à reflexão sobre o nosso próprio modelo de eleição da Assembleia da República.

Há semanas que se apregoava uma vitória esmagadora da extrema-direita. Talvez pudesse ter sido uma realidade, caso as eleições francesas se dessem numa única volta, sem círculos uninominais e sem necessidade de obtenção de maioria absoluta dos votos.

A Assembleia Nacional (nome francês para Assembleia da República) é composta por 577 deputados (versus os 230 de Portugal), eleitos por círculos uninominais, em que o candidato mais votado e que alcance 50% dos votos é eleito. Se tal não se verificar, há lugar a uma segunda volta para nova tentativa de eleição.

O que se passou em França foi que na primeira volta das eleições (há uma semana) foram eleitos, com mais de 50% dos votos, 76 deputados. Nos restantes 501 círculos, os deputados da União Nacional (de extrema-direita) apareceram com forte probabilidade de eleição.

Nos dias seguintes, os candidatos do centro esquerda e centro direita desistiram e apelaram ao voto no candidato mais bem colocado. O objetivo? Evitar a vitória do candidato da extrema-direita, estratégia que se veio a revelar vencedora. A este movimento de união entre todos os candidatos, que não os da extrema-direita, deu-se o nome de Frente Republicana.

Curiosamente, os derrotados que não passaram chamaram-lhe uma aliança contranatura ou uma coligação presidencial com a esquerda. Contudo, até o partido Republicano, ou seja, os conservadores franceses, fizeram parte deste movimento, o que demonstra que se tratou efetivamente de uma Frente Republicana.

Ao contrário do que vinha sendo sugerido pelos “estudos de opinião”, a esquerda venceu. Mas que esquerda? A coligação Nova Frente Popular, composta pela extrema-esquerda, socialistas, verdes, comunistas e alguns independentes. Juntos elegeram 188 deputados, tornando-se a maior força política. Já o partido do Presidente Macron, Juntos pela República, conseguiu 168 deputados, ficando em segundo. Finalmente, a extrema-direita ficou em terceiro lugar, com 143 lugares no parlamento.

Num primeiro olhar, esta divisão de forças poderá levar à ingovernabilidade do país. Todavia, a França tem tido a capacidade de se reinventar. Um bom exemplo disso mesmo é a própria coligação que ganhou as eleições, que foi formada três semanas antes do ato eleitoral.

O próximo grande passo será governar o país, uma vez que não há qualquer bloco com maioria absoluta dos deputados (289). Nos termos da Constituição, o Presidente Macron terá até dia 18 deste mês para nomear um novo primeiro-ministro. E para que a nomeação funcione, convém que reúna um consenso alargado de forma a resistir a uma moção de censura.

As hipóteses, ainda que académicas, são várias: um governo de Unidade Nacional; um “governo técnico”, como aquele a que presidiu Mário Draghi em Itália entre 2021 e 2022; ou um governo minoritário, que chefiará à vista.

É importante compreender a composição de cada uma das coligações: a Nova Frente Popular elegeu 76 deputados da França Insubmissa, 65 deputados do Partido Socialista (que aparece como a Fénix renascida das cinzas), 33 deputados dos Verdes, 9 deputados do Partido Comunista e 3 deputados entre independentes e outras forças. Esta composição, bem como a restante repartição de deputados, pode vir a revelar-se crucial para alcançar uma maioria que assegure a estabilidade governativa de França.

Uma coisa é certa: tal como na revolução francesa, pode assistir-se ao rolar de cabeças mas durante os próximos 12 meses (período constitucionalmente instituído para a realização de novas eleições) os franceses terão de se entender, de uma maneira ou de outra.

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