Duas acções preventivas – Parte I

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Não é banal que no período eleitoral em curso os líderes das duas principais forças concorrentes tenham sido sucessivamente seleccionados – e mantidos – como alvos de “acções preventivas”, previstas na lei como “medidas de combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira”.

Essas “acções preventivas” deram entrada na nossa legislação em 1994, no termo dum processo legislativo em que ficaram bem explicitados os problemas e riscos associados a essa inovação, que a realidade agora potencia. Há pois que começar por aí. A iniciativa pertenceu a um governo de maioria absoluta do PSD e nenhuma das demais forças parlamentares – que eram então PS, CDS-PP e PCP – a aprovou. Na proposta de lei (frustrada uma outra via anteriormente tentada) pretendia-se legitimar “recolhas de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal”. Instituía-se assim, para determinado tipo de crimes, um processo administrativo a anteceder a fase do inquérito-crime. Coube ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva, reprovar a solução proposta, por violação de direitos, liberdades e garantias.

Retomado meio ano depois o processo legislativo, os retoques introduzidos apenas convenceram o próprio grupo parlamentar que os propunha (PSD): todos os demais votaram contra. Haveria, contudo, uma segunda passagem pelo Tribunal Constitucional – e, desta vez, mantendo-se embora a oposição dos juízes intervenientes que tinham rejeitado a anterior versão, veio a formar-se, em nova composição, uma maioria favorável à versão retocada.

Por força do pedido – e de outras circunstâncias hoje ultrapassadas – o exame de constitucionalidade fez-se, nos dois momentos, sob um ângulo limitado. Mas encontram-se nele postos em evidência todos os factores de risco presentes na solução: seja quem for que proceda à “recolha”, MP ou PJ, estamos perante (1) uma actuação de carácter administrativo (2) a decorrer “por tempo indeterminado” (3) com “ausência de quaisquer instrumentos defensivos” (4) “sem garantias de submissão a curto prazo a controlo judiciário” (5) “com indisfarçável carga de subjectivização” (Monteiro Diniz) e (6) envolvendo mesmo uma regressão relativamente a um regime específico anterior, na mesma matéria, em que estava prevista a audição dos visados. É frente a tal reforço da dimensão discricionária que o relator do primeiro acórdão – o antigo magistrado do MP Tavares da Costa – invoca o juízo de Norberto Bobbio sobre figurino semelhante: “os titulares do poder passam a exercê-lo cada vez menos com base em normas gerais e abstractas e mais por critérios ditados por oportunidade, ou segundo as regras da experiência, as necessidades e as conveniências”, com isso “distanciando-se progressivamente do governo da lei e dos princípios do Estado de Direito”. Nesse tempo, já a pátria de Bobbio conhecia alguns dos efeitos da operação “Mãos Limpas”.

Jurista, antigo ministro.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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