Do Enola Gay à música, o pior das ordens cegas
Em janeiro, logo no primeiro dia de trabalho na Sala Oval, neste seu regresso à Casa Branca, Donald Trump assinou uma série de ordens executivas em que determinou o fim de contratos e apoios prestados por agências federais a programas de DEI(Diversidade, Equidade e Inclusão), ordenando ainda que não os promovam no futuro. No entender do presidente dos Estados Unidos, tais programas constituíam “um enorme desperdício de recursos públicos” e evidenciavam “uma discriminação vergonhosa”, pois todos os americanos mereciam ser tratados “com igual dignidade e respeito”, como se pode ler no texto da ordem executiva. Uma justificação que até faz sentido, não fosse o problema ignorar o estigma racial e de género que ainda persiste em muitas regiões dos EUA, que torna mais difícil a populações desfavorecidas terem, precisamente, o tratamento em pé de igualdade de Trump preconiza.
Um dos mais expeditos a aplicar as novas regras foi o novo secretário da Defesa, Pete Hegseth, que fez chegar instruções ao Pentágono para eliminar dos arquivos públicos imagens e posts que promovam mensagens de diversidade. Isso passou por sinalizar ficheiros que contivessem menções ao género ou à raça, incluindo palavras como “gay”, e, como noticiou a AP, cedo se percebeu que algumas das imagens sinalizadas para apagar eram do bombardeiro B-29 Enola Gay, avião militar dos EUA do qual foi lançada, em 6 de agosto de 1945, a bomba atómica que arrasou a cidade japonesa de Hiroshima. O avião, que é hoje peça de museu, foi batizado em homenagem a Enola Gay Tibbets, mãe de Paul Tibbets. Além do Enola Gay, também foram sinalizadas para apagar imagens de veteranos de guerra com o nome Gay, bem como outras de militares negros, indígenas ou de mulheres que quebraram barreiras de género e são parte da história militar norte-americana precisamente por isso.
A aplicação cega deste conjunto de regras tem resultado em episódios caricatos e injustos, mas também em alguns casos quase desumanos. O programa 60 Minutes, da CBS, revelou domingo uma dessas situações. Em 2024, a Marinha norte-americana promoveu, em conjunto com a ONG Equity Arc (faz mentoria e presta apoio a jovens músicos de minorias étnicas), um projeto que dava a oportunidade a um grupo de adolescentes, de diversas origens, de tocar com a banda daquele ramo militar. Os candidatos foram selecionados através de audições e o concerto estava marcado para maio. No entanto, após a ordem executiva de Trump seria cancelado, quando os jovens já ensaiavam há quase um ano. Foi então que vários músicos e antigos militares que passaram pela banda da Marinha se juntaram para trabalhar com estes jovens. O 60 Minutes fez a reportagem e gravou toda a atuação. Como notou o jornalista Scott Pelley, este concerto acabou por ser visto por milhões em vez de ter apenas umas centenas de pessoas a assistir na plateia. A solidariedade pode ter ganho esta batalha perante a cegueira ideológica. Mas esta guerra está em curso e tal, como num conflito militar, haverá sempre muitos inocentes entre as vítimas.