Deveríamos estar preocupados com o Mar Vermelho?
São vários os motivos para se ficar horrorizado com os recentes acontecimentos no Médio Oriente e a perspetiva de que os ataques ao transporte marítimo possam prejudicar o combate à inflação está muito, muito abaixo na lista. No entanto, se estiver a tentar prever a inflação, certamente que a perturbação de um importante ponto de estrangulamento do comércio mundial - o Mar Vermelho é o meio utilizado para navegar o Canal de Suez - não é o que se pretende. Mas qual a magnitude do problema?
Bem, não é trivial. Contudo, apesar de os problemas de abastecimento na sua generalidade terem contribuído fortemente para o aumento da inflação em 2021-2022, e de a resolução desses mesmos problemas ser a principal explicação para a recente desinflação, é importante que não nos precipitemos. A acumulação de navios em espera fora dos portos de Los Angeles no início de 2022 constituiu uma causa altamente notória e manifesta da inflação, mas teve menos impacto do que outros fatores mais difusos e relativamente intangíveis, incluindo a forma como a pandemia e as suas consequências afetaram os mercados de trabalho. Uma vez que não existem motivos para contar com o regresso destes problemas mais difusos, o impacto inflacionista do conflito com os Houthis e o seu efeito no transporte marítimo do Mar Vermelho serão reduzidos.
Mas, antes disso, permitam-me uma breve reflexão sobre a situação atual da inflação. Desde a publicação do relatório da semana passada sobre o índice de preços no consumidor (IPC), tive várias conversas com amigos que acreditam, provavelmente com base no que ouviram dos comentadores na televisão, que a inflação está estagnada num nível relativamente elevado. De facto, o núcleo do IPC, que exclui a alimentação e a energia, subiu 3,9% no último ano.
Porém, qualquer pessoa que mencione este valor como prova de uma inflação persistente está altamente desinformada. Com efeito, se essa mesma pessoa prestar serviços de consultoria financeira, a referência ao valor de 3,9% representa uma imperícia profissional.
De modo a comprová-lo, permitam-me apresentar mais alguns valores:
- Núcleo do IPC nos últimos 12 meses: 3,9%
- Núcleo do IPC nos últimos seis meses (anualizado): 3,2%
- Núcleo do IHPC (índice harmonizado de preços no consumidor) nos últimos 12 meses: 1,9%
- Expectativas do mercado quanto à inflação em 2024: 2,2%.
Assim, quando alguém menciona uma inflação de 3,9% ao longo do ano passado, está na verdade a considerar uma inflação média de 4,6% no primeiro semestre e de 3,2% no segundo semestre, ou seja, está bastante afastado da realidade. Além disso, uma parte considerável de tal inflação corresponde a estimativas oficiais dos custos de habitação, nomeadamente, à estimativa do montante que os proprietários pagariam se fossem inquilinos, que é substancialmente inferior às rendas do mercado.
O índice harmonizado de preços no consumidor, que não inclui este valor imputado - e que é o método utilizado pela Europa para medir a inflação - já desceu até ao objetivo de 2% estabelecido pela Reserva Federal, o que demonstra que as estimativas erróneas dos custos de habitação estão na origem das perceções de uma inflação persistente. É um facto reconhecido pelos mercados: o recente comportamento do mercado sugere uma crença no que os dados realmente nos mostram, ou seja, que a inflação já está sob controlo.
O que me remete, finalmente, para a questão inicial: pode parecer que, neste momento, ganhámos a guerra contra a inflação, mas será que as perturbações no transporte marítimo no Mar Vermelho a trarão de volta? Voltamos assim à questão de como é que a inflação se agravou de tal forma durante um certo período e porque é que desceu tão facilmente.
Quando a inflação disparou em 2021, centrou-se, a princípio, em setores que enfrentavam estrangulamentos na oferta devido aos efeitos retardados da pandemia. Muitos economistas, entre os quais me incluo, pensaram que a inflação diminuiria em breve, assim que esses estrangulamentos fossem resolvidos. Os que acreditavam nesta ideia foram apelidados de equipa transitória - e estávamos errados. A inflação estendeu-se à maior parte da economia.
Existem várias formas de demonstrar esta extensão. Uma delas consiste em comparar a taxa de inflação medida pelo deflacionador do consumo privado - que a Reserva Federal privilegia em relação ao IPC - com a estimativa da “média aparada” produzida pelo Banco da Reserva Federal de Dallas, que exclui oscilações extremas de preços.
Até cerca de setembro de 2021, apesar de um crescimento acentuado da inflação total, a média aparada não tinha registado uma aceleração significativa, indicando que os estrangulamentos em alguns setores eram o principal motivo. Porém, em seguida, a média aparada também disparou, indicando que não se tratava apenas de estrangulamentos.
Nesse caso, o que é que estava a impulsionar a inflação? Inúmeros economistas, entre os quais se destaca Larry Summers, afirmaram que o problema residia nos gastos excessivos e que o controlo da inflação implicaria tanto grandes reduções nos gastos como um grande aumento do desemprego.
No entanto, não foi isso que aconteceu. De acordo com quase todas as medidas (exceto os 3,9% extremamente enganosos que continuam a ser usados), a inflação caiu rapidamente em 2023, sem se verificar qualquer aumento no desemprego.
Que sentido podemos dar a esta história? Em suma, a equipa transitória tinha razão, mas o seu raciocínio era demasiado limitado. É verdade que a pandemia provocou grandes perturbações, as quais representaram uma componente significativa da história da inflação, mas estas foram muito além dos estrangulamentos físicos, como os portos entupidos, e demoraram muito mais tempo a resolver.
Vejamos a questão desta forma: confrontados com a pandemia, os americanos reorganizaram as suas vidas, a forma como trabalhavam e como gastavam o seu dinheiro. Posteriormente, à medida que o medo em relação ao contágio diminuiu, voltaram a reorganizar as suas vidas, retomando alguns hábitos antigos, mas não todos. As pessoas deixaram de sair para comer fora e depois voltaram a fazê-lo; começaram a trabalhar a partir de casa e, em muitos casos, continuaram a fazê-lo, o que implicou grandes mudanças na geografia da economia, que foi precisamente onde tudo aconteceu.
Tudo isto criou bastante rotatividade, uma vez que as empresas e as pessoas alteraram as suas estratégias.
Uma maneira fácil de medir a rotatividade é a taxa a que os trabalhadores se despedem voluntariamente. Normalmente, a taxa de despedimento está negativamente correlacionada com a taxa de desemprego: os trabalhadores estão mais dispostos a despedir-se quando estão confiantes de que encontrarão novos empregos. No entanto, durante algum tempo, os despedimentos contrariaram essa tendência e registaram níveis muito elevados (tal como as ofertas de emprego não preenchidas), antes de descerem com a adaptação da economia às mudanças após a pandemia.
Esta rotatividade implicou uma escassez temporária e generalizada de trabalhadores e do que estes produziam, o que fez subir a inflação, que depois caiu quando a economia estabilizou. Afinal, a inflação era, de facto, transitória, mas a sua transição foi maior e mais longa do que pensávamos.
Daí voltarmos ao tema do Mar Vermelho (não, não me esqueci). Uma das formas de refletir sobre os efeitos dos ataques dos Houthis ao transporte marítimo prende-se com o facto de poderem recriar uma situação comparável aos estrangulamentos de abastecimento registados no primeiro semestre de 2021, embora numa escala mais reduzida. No entanto, como já referi, esses estrangulamentos acabaram por ser apenas um elemento relativamente pequeno na história geral da inflação. Além disso, nada do que aconteça no Médio Oriente causará o tipo de perturbação que levou a inflação a atingir níveis tão elevados e generalizados.
Assim, os resultados económicos dos acontecimentos no Mar Vermelho, embora não sejam excelentes, não são motivo de grande preocupação. Agora, perguntem-me o que acontecerá se a China atacar Taiwan.
Este artigo foi publicado originalmente no New Your Times
Paul Krugman é colunista do New York Times, professor da Universidade da Cidade de Nova Iorque e Prémio Nobel da Economia.