Despedida do general Rocha Vieira

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Conheci o nome do general Rocha Vieira em 1991, quando ele foi nomeado Governador de Macau. Todos os portugueses que trabalhavam em Macau tinham um nome chinês à maneira chinesa, isto é, em vez de ter um nome chinês resultante de uma simples tradução fonética, recebia um nome composto por três ideogramas, na ordem de “apelido (um ideograma) + nome próprio (dois ideogramas)”. Achei o nome dele, Wei Qili ou Wei Qi Li, extremamente imaginativo e descritivo, o qual foi citado e comentado constantemente nas minhas aulas de tradução entre português e chinês destinadas a universitários chineses de mobilidade, tanto na Universidade de Aveiro como na Universidade Nova de Lisboa: Wei, apelido, procedente de Vieira; Qi, “singular”, “invulgar”, “espetacular”, “maravilhoso”, entre outros sentidos; e Li, “estar em pé”. Sempre que olho para este nome, surge aos meus olhos uma rocha invulgar firmemente erguida. 

Depois de ter chegado a Lisboa em 1991, comecei a colaborar com a antiga Missão de Macau em Lisboa, tendo ouvido constantemente o nome dele através da Senhora Eng. Alexandra Gomes, a então chefe da Missão de Macau. Fiquei a saber que foi o general Rocha Vieira, Governador de Macau, que aprovou muitos projetos desenvolvidos ou colaborados pela Missão: o curso de língua e cultura chinesa, que atraiu milhares e milhares de habitantes locais durante mais de 20 anos; o apoio a bolseiros de Macau que estudavam em Portugal, no âmbito de formação de quadros locais, entre os quais, imensos assumem hoje cargos importantes no governo da RAEM; o antigo Museu de Macau Virtual e o atual Museu de Macau, físico; o apoio ao Mestrado em Estudos Chineses na Universidade de Aveiro, para o qual fui indicada pela Missão para integrar a lista dos docentes, com responsabilidade pelas unidades curriculares de língua e cultura chinesa, que eram as primeiras do género em Portugal; a fundação do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM)... Nessa altura, conhecia o general de nome e de cara, na televisão.

Depois da passagem da administração de Macau para a China, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o general em Lisboa, em vários eventos relacionados com Macau e em algumas reuniões na Fundação Jorge Álvares, sobretudo depois de me tornar membro do seu conselho consultivo. Num ano, quando estava a fazer uma palestra sobre o zodíaco chinês no CCCM, fiquei tão admirada e sensibilizada ao reparar que ele estava sentado na primeira fila, a ouvir atentamente a minha explicação.

Quando nós, docentes e alunos da língua e cultura chinesas, decidimos fundar a Associação Portuguesa dos Amigos da Cultura Chinesa em 2018, a nossa vice-presidente Helena Mouro sugeriu o  general para um dos nossos membros honorários. “É uma ideia fantástica. Mas ele deve estar muito ocupado e será que vai aceitar?” Como presidente da Associação, tive os meus receios. Entretanto ele aceitou sem hesitação, e veio à cerimónia inaugural com a sua mulher Leonor, cortou a fita vermelha com outros ilustres convidados.  

A partir daí, participava, sempre que podia, nas atividades desenvolvidas pela Associação. Esteve presente na videoconferência Colóquio de 100 Anos do Partido Comunista da China, em 2021; era um dos membros do júri do Concurso Nacional “Eu e a China” em 2022, a avaliar, no prazo de uma semana, 26 textos escritos em português, e a discursar e conceder prémios na Cerimónia da Entrega dos Prémios...

Num dia de 2024, o meu telemóvel tocou. Quando atendi a chamada e ouvi a voz do general, a explicar-me que não poderia estar presente na Leitura de Álbuns Chineses, porque... Fiquei profundamente sensibilizada por esta chamada inesperada, e este gesto bonito e nobre. Ele bem podia dar um recado através de alguém, mandar uma mensagem por telemóvel ou não dizer nada, como muita gente fazia e faz, mas não, ele ligou-me pessoalmente a explicar humildemente o motivo da ausência.

Esta sexta-feira, na Capela do Paço da Bemposta, cheia de gente tanto no interior como no lado de fora, ouvindo intervenções a lembrar-se do general, e depois à porta, presenciando a partida dele, sob olhar atento e respeitoso dos militares e civis que enchiam a rua, vieram-me à mente esses contactos com ele e as lágrimas corriam sem eu conseguir conter. Um grande homem, reto e firme como rocha, cidadão fiel a Portugal e amigo sincero da China. Viverá sempre no nosso coração!  

Professora de Língua e Cultura Chinesas 

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