Desculpas que não se pedem nem se evitam

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Muitos motivos existirão para questionar a procuradora-geral da República, Lucília Gago, acerca da atuação do Ministério Público, mas não se pode negar que primou pela clareza na leitura que fez do efeito da Operação Influencer na vida de António Costa.

Entrevistada na noite desta segunda-feira pela RTP, que teve precedência em relação à Assembleia da República, levando o jornalista Vítor Gonçalves a esclarecer que o agendamento foi anterior à solicitação dos deputados, Lucília Gago revelou uma doutrina piafiana - na variante “je ne regrette rien”, em vez do “la vie en rose” que em tempos apontaram a outros procuradores-gerais - e deixou claro que se considera alheia aos desenvolvimentos que fizeram do antigo primeiro-ministro português o futuro presidente do Conselho Europeu.

Foi em tom sereno que a procuradora-geral, para quem “a discrição é bem melhor do que o espalhafato”, assumiu a responsabilidade pelo famoso último parágrafo do comunicado, que apresentou a Operação Influencer aos portugueses, dando conta do inquérito a correr no Supremo Tribunal de Justiça, devido a referências a alegadas intervenções ilícitas de António Costa. E foi sem espalhafato que, quando o entrevistador lhe perguntou se pediria desculpas ao ex-primeiro-ministro se o inquérito fosse arquivado, Lucília Gago respondeu com um seco “de modo nenhum”. Isto porque, no seu entender, “não há ninguém que consiga, em razão do cargo que ocupa, ou da influência que tem na sociedade, ter um estatuto especial”.

No país em que tantas vezes se repete que “as desculpas não se pedem; evitam-se”, a mulher no topo da hierarquia do Ministério Público optou por não pedir, nem evitar, na medida em que investigar denúncias e indícios de atividade ilícita é dever da Justiça, e estar sujeito a tais investigações pode ser encarado como o preço que todo e qualquer cidadão tem de aceitar por viver num Estado de Direito.

Sendo tentador, e altamente autossatisfatório, ver nisto tendências “pidescas”, apetência por “golpes de Estado” e ânsia de condicionar a democracia, a verdade é que Lucília Gago apresentou argumentos válidos para reduzir o que sucedeu desde a manhã de 7 de novembro de 2023 à “avaliação pessoal e política” de António Costa. E, sobretudo, não se esqueceu de recordar casos de políticos sob investigação (a si próprios ou a muito próximos), desde Ursula von der Leyen a Pedro Sánchez, que continuaram (e continuam) em funções, sendo incerto que algum deles tenha algo a ensinar ao português sobre a arte de manter a serenidade (alicerçada na certeza da inocência) até quando, como o Dâmocles da mitologia grega, se vive com uma espada aguçada a pairar sobre a cabeça.

P.S. - Quando muitos pensavam na sucessão de Lucília Gago, caiu a notícia da morte da sua antecessora, Joana Marques Vidal. Os seis anos que esteve na Procuradoria-Geral da República foram marcados por investigações judiciais a alguns dos políticos e empresários mais destacados do país, desafiando ideias feitas, e persistentes, sobre a impunidade dos poderosos. Portugal deve uma homenagem a quem partiu muito cedo.

Grande repórter do Diário de Notícias

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