Depois do terror da era Assad, o terror pós-Assad

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O novo líder sírio bem pode continuar a apelar à unidade nacional, que os massacres entretanto multiplicam-se, com as milícias islamistas afetas ao regime de Damasco a perseguirem a minoria alauita, e também, segundo relatos no terreno, alguns cristãos. Apesar de Ahmed Al-Sharaa se ter esforçad,o desde a tomada do poder em dezembro para transmitir a ideia de que a Síria pós-Assad seria um país para todos, reprimindo mesmo alguns abusos esporádicos contra as minorias religiosas, eram já esperados problemas com os alauitas, cerca de 10% da população. Por serem a comunidade de origem de Bashar Al-Assad e do seu pai e antecessor Hafez Al-Assad, são vistos como cúmplices da repressão que durava há meio século e que se intensificou durante a guerra civil iniciada em 2011.

A própria vaga de violência atual terá começado com confrontos entre grupos alauitas armados, que não aceitam os novos governantes, mas a resposta dos grupos islamistas, muito deles jihadistas, alastrou às populações na zona costeira, bastião da comunidade, e ainda a Damasco, a capital. O ódio aos alauitas tem raízes muito mais profundas do que a mera associação à ditadura dos Assad. Apesar de se considerarem muçulmanos, uma corrente ultraminoritária do xiismo, são vistos como heréticos por muitos seguidores do Islão, nomeadamente por aqueles que têm uma visão de purismo da mensagem religiosa do profeta Maomé e não aceitam qualquer tipo de pluralismo.

O próprio Al-Sharaa, muçulmano sunita como a maioria dos sírios, tem um passado de obediência à Al-Qaeda, multinacional jihadista, e se o seu Hayat Tah- rir al-Sham (HTS) se moderou nos últimos anos até se converter no grupo que liderou o assalto fulminante a Assad no final de 2024, nem todos os grupos de combatentes fizeram a mesma evolução. Há jihadistas estrangeiros, caso, por exemplo, de muitos vindos da Chechénia, para quem a ideia de Síria não faz sequer sentido, pois acreditam lutar não por um país, mas sim pela Ummah, a comunidade islâmica no seu todo. E se o seu ódio neste momento parece concentrado nos alauitas, e nos xiitas em geral, é de temer que se virem, a qualquer momento, para as outras minorias religiosas, a começar pelos cristãos de várias denominações. Que os líderes religiosos de três dessas Igrejas (a ortodoxa grega, a ortodoxa siríaca e a greco-católica melquita) tenham emitido uma declaração conjunta a denunciar as perseguições e a pedir ação das autoridades é sintomático do que pode estar para vir.

Os cálculos sobre os números de cristãos no país são hoje pouco fiáveis, e vão dos 300 mil atuais a uma estimativa de cerca de dois milhões em 2011, quando os ventos da Primavera Árabe, iniciada na Tunísia, chegaram à Síria, depois de passarem pela Líbia e pelo Egito, derrubando vários líderes. Mas do Líbano, onde ainda são numerosos, ao Iraque, onde resistem e até tiveram uma visita do Papa a dar-lhes esperança, a tendência é cada vez mais para emigrarem para o Ocidente. Na Síria, também, percebe-se.

Foi a tradição laica dos Assad, a par do apoio russo e iraniano (e dos xiitas libaneses do Hezbollah), que permitiu ao regime resistir 13 anos, proclamando-se protetor das minorias. Agora a situação inverte-se, e também os drusos receiam perseguições religiosas, ao ponto de Israel já se oferecer para os proteger. Os curdos, outra minoria, mas não religiosa, resistem igualmente à submissão a Damasco, mas a sua luta depende muito da evolução da própria situação do separatismo curdo na Turquia, depois do PKK ter anunciado um cessar-fogo após 40 anos de luta armada.

O terror que era praticado pelos partidários da família Assad, que se refugiou na Rússia, fez a comunidade internacional acolher com alguma expectativa o novo poder. E Al-Sharaa, ao trocar o uniforme pelo fato, deu um sinal de que defenderia a paz. O seu discurso é ainda de proteção das minorias, mas será avaliado pela ação. Deu ordens, mas dificilmente terá a capacidade para travar os ódios acumulados. E sem fortíssima pressão sobre o senhor de Damasco, o futuro é sombrio para as minorias sírias.

Diretor-adjunto do Diário de Notícias

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