De tarde fui nadar

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É muito difícil escrever na manhã seguinte a uma declaração de guerra. Kafka escreveu no seu diário, no dia 2 de agosto de 1914: “Hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde fui nadar”. Kafka não foi indiferente aos acontecimentos e escritos posteriores seus mostram a sua angústia perante a guerra que dilacerava a Europa. Mas o que se pode dizer no início ou na viragem decisiva de uma guerra?

As declarações de guerra, apresentadas formalmente aos governos por embaixadores em trajes de cerimónia, são, porém, coisa do passado. O estado de guerra entre o Irão e Israel existia há muito tempo e o facto novo, mas tão ou mais relevante do que uma declaração de guerra à antiga maneira diplomática, foi a entrada em força dos Estados Unidos nesta guerra.

A Arábia Saudita, que se apressou a condenar o ataque dos seus amigos americanos, e os emiratos do Golfo Pérsico (insisto, Golfo Pérsico) sabem que Teerão e os seus aliados hutis no Iémen têm capacidade para bloquear as suas remessas de petróleo por algum tempo. Esta viragem fundamental (embora previsível) no curso da guerra no Médio Oriente vai obrigar os Estados árabes a mais declarações platónicas de apoio aos palestinianos, que entretanto continuarão a ser massacrados, agora com menos espetadores, porque as atenções estarão viradas para o Irão. Uma boa notícia também para Putin, que se permite declarar, contra todos os tratados que a Rússia assinou, que a Ucrânia é uma parte integrante da Rússia.

Nós não sabemos (e a declaração arrogante de Trump de que a Europa nada tinha que ver com as negociações com o Irão mostra que muitos mais não sabiam) os negócios ou, como prefere dizer Trump, as transações, que terão sido tecidas entre os poderes dominantes, de que a Europa foi excluída, isto é, entre os Estados Unidos, a Rússia e (quem sabe?) a China.

E como nem nós, leitores do Diário de Notícias, nem os dirigentes da nossa Europa (o que é mais grave) estão dentro da verdadeira negociação paralela a esta batalha, encerro esta página, não, como Kafka, declarando a minha intenção de ir nadar (ainda que o tempo hoje esteja bom para essa atividade), mas ocupando os carateres que me restam com o final da crónica que tinha escrito para hoje, sobre a perda das ilusões e a corrida, no final de Os Maias, de Carlos da Maia e João da Ega atrás de um transporte público:

Atrevo-me a pensar que alguns leitores possam sentir-se identificados, lá no fundo de si mesmos, com o estado de perda de ilusões em que este cronista se encontra (ou pretende que se encontra: como o poeta, o cronista é um fingidor). Se assim for, terá valido a pena este exercício de escrita à volta da perda das ilusões. É aliás um belo título de um excelente romance de Balzac, As Ilusões Perdidas, que em muitas ocasiões parece até passar-se nos dias de hoje. Ou o final da Educação Sentimental de Flaubert ou dos Maias do Eça, onde a perda das ilusões é sintetizada numa conversa cínica entre os principais personagens (Flaubert) ou numa cómica corrida atrás de um meio de transporte, a caminho de uma capitosa ceia (Eça). Porque, afinal, perdidas as ilusões, resta-nos só o irrisório exercício da nossa sobrevivência.

A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e João da Ega uma esperança, outro esforço:

- Ainda o apanhamos!

- Ainda o apanhamos!

Diplomata e escritor

Diário de Notícias
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