Da Rússia à paz na Europa: uma ambição bastante complexa

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Os EUA e a Ucrânia reuniram-se esta terça-feira, na Arábia Saudita, para discutir uma proposta de cessar-fogo entre a Ucrânia e a Rússia, bem como outras questões essenciais para a continuação do relacionamento entre as duas partes, a americana e a ucraniana. A declaração final, cujo rascunho foi no essencial redigido pela equipa de Marco Rubio, o Secretário de Estado da Administração Trump, só menciona a Europa graças à insistência dos ucranianos. É apenas uma frase, pouco mais do que uma nota de rodapé, para sublinhar que a Ucrânia considera que a implicação europeia - implicação foi a palavra tolerada para constar no texto comum - deve fazer parte das negociações futuras. O lado americano acedeu porque a frase é claramente atribuída à parte ucraniana. Na realidade, a delegação de Rubio não mostrou interesse na participação dos europeus no processo. Confirmou, assim, a linha política que agora impera na Casa Branca em Washington: a Europa é considerada como um ator geopolítico insignificante.

Para os russos, a proposta aprovada na Arábia Saudita não tem qualquer hipótese de ser considerada como um ponto de partida. Putin mantém as reivindicações que há muito anunciou. Aposta na continuação da guerra. Apenas suspenderá a invasão em larga escala que já dura há três anos no dia em que o presidente Trump lhe oferecer de bandeja a capitulação de uma Ucrânia desmilitarizada, a saída do poder de Volodymyr Zelensky, o reconhecimento da soberania russa na Crimeia e nos territórios ilegalmente ocupados, e a redução ou o termo da presença da NATO no Leste da Europa.

Putin sabe da poda. Sabe que manter uma posição firme poderá forçar Trump a ceder, em parte, e a fazer pressão sobre Zelensky. O presidente americano quer ficar na História como o líder que conseguiu aquilo a que ele chama a paz na Ucrânia, mas que, de facto, é uma armadilha geopolítica do Kremlin. Putin e os seus têm décadas de experiência na arena internacional. Em comparação, Trump e os seus subordinados são meros amadores. Trump não compreende que Putin é bem mais perigoso que Xi Jinping.

No que diz respeito à Europa, faço três comentários, além do que ficou escrito no primeiro parágrafo. Refiro-me a Emmanuel Macron, à NATO e à Europa da Defesa.

Macron percebe o que está em jogo. Que não se trata apenas do ataque contra a Ucrânia. Que Putin é um homem do passado e representa uma ameaça muito séria. Alguém que vê certos Estados europeus como inimigos históricos da nação russa. E que está convencido de que os países do Leste da Europa, outrora membros do Pacto de Varsóvia, devem mostrar um alinhamento sem reservas com o Kremlin. Finalmente, Macron diz claramente que Putin é um ditador que não quer democracias na vizinhança do seu país, por ter medo do contágio ou daquilo a que chama conspirações contra a ordem existente na Rússia. E que a manutenção do seu poder pessoal é a principal preocupação e a fonte da agressividade de Putin.

Macron, como outros líderes europeus, compreendeu agora que o escudo norte-americano, no que respeita à proteção da Europa, pode ser apenas uma ilusão. A verdade é que a leitura dos riscos não coincide, quando se comparam as conclusões que Washington ou o nosso lado do Atlântico, Canadá incluído, tiram sobre os problemas atuais. Por isso, organizou esta semana uma reunião com os chefes das Forças Armadas de cerca de 30 países - os EUA não foram convidados - para discutir a cooperação possível em apoio ao processo ucraniano, e não só. Macron talvez pense que, mais tarde ou mais cedo, vai ser necessário organizar uma coligação armada que impeça uma vitória russa. Ninguém gosta do cheiro da pólvora. Mas ainda menos alguém aceita vir a estar sob a bota de um ditador.

Agora, o comentário sobre a NATO. Não creio que os EUA tenham, neste momento, a intenção de sair da NATO. Para já, poderemos assistir a uma redução significativa da presença militar americana no continente europeu. Ficarão apenas as forças necessárias para assegurar o controlo das áreas estratégicas da Aliança. Uma decisão desse tipo pode criar uma oportunidade para reforçar a parte europeia da NATO. Sermos ou não sermos capazes de o fazer, eis a questão.

E isso traz-nos ao terceiro comentário que é sobre a Europa da Defesa. Deve ser abrangente, em ligação com a NATO, mas com autonomia em termos de decisão política. Não será fácil de construir, nem de manter coesa. Mas precisa de ser tratada como uma ambição prioritária. Para começar, é essencial que as encomendas de material e armamento que estão na calha sejam feitas sem demora, sem burocracias complicadas. Encomendas a empresas europeias, acima de tudo. Este será um indicador que convirá seguir com atenção.

Conselheiro em segurançainternacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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