Da Grandeza Imperial ao Além 'Brexit': reflexão pós-eleições no Reino Unido

Publicado a
Atualizado a

“Somos uma grande Nação, mas
se continuarmos a comportar-nos
como uma grande potência, em breve
deixaremos de ser uma grande Nação.” 
Henry Tizard

No passado dia 4 de Julho, enquanto fogos de artifício resplandeciam no céu americano, celebrando a sua independência do Reino Unido (RU), eram eleitos nos quatro cantos desse reino (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte), os 650 membros da Câmara dos Comuns, instituição cujas origens remontam ao longínquo século XIII. Tal como previsto pelas sondagens, o ritual democrático marcou o fim de uma era. O Partido Conservador cedeu lugar, após década e meia no poder, ao Partido Trabalhista.

A chegada de Keir Starmer, líder dos Trabalhistas, ao célebre Número 10 de Downing Street assinala uma mudança de guarda, embora sem as promessas de transformações grandiosas que caracterizaram o início da era Blair em 1997. Ao contrário de Tony Blair, que inaugurou o seu mandato sob o signo da abundância e do optimismo, o novo Governo Trabalhista enfrenta uma realidade austera: os cofres públicos encontram-se menos recheados, a reputação internacional do RU oscilante e a Nação em momento de reconfiguração crítica. A verdade é que o Brexit, caracterizado por intensos clamores de restauração da soberania britânica, eliminou o pilar europeu da política externa do reino, relegando o país à complexa tarefa de redefinir o seu papel no cenário global.

Assistimos a uma repetição do que já foi. Conta a História que há cerca de seis décadas, em 1962, Dean Acheson, um influente estadista americano do período pós-guerra e Secretário de Estado durante a presidência de Harry S. Truman, fez uma observação cáustica, sobre este tema, que ressoou profundamente. O RU havia perdido um Império, hesitando, apesar das suas novas circunstâncias, em juntar-se ao grupo de nações fundadoras da Comunidade Europeia, na Conferência de Messina de 1955. Tal relutância devia-se à incorrecta presunção de que os seus laços com a Commonwealth e com Washington continuariam a conferir-lhe um lugar de proeminência no palco internacional. A ironia de Acheson doeu porque o então primeiro-ministro Harold Macmillan reconheceu a verdade das suas palavras.

Prevalecia a errónea convicção de que o país detinha uma posição de relevo no panorama internacional, membro consagrado de um triunvirato influente que incluía os EUA e a União Soviética. Uma visão de grandeza continuava a impulsionar a política externa britânica, desafiando as adversidades resultantes de uma guerra que tinha esgotado os seus recursos financeiros.

O RU acabou por navegar, ao longo de anos, um espectro que variou entre períodos de manifesta influência e episódios humilhantes - como a crise do Suez de 1956 -, tendo finalmente alcançado um equilíbrio estratégico no seio da Comunidade Europeia. A influência que exercia em Bruxelas reforçava a sua presença em Washington e um lugar privilegiado à mesa em Washington consolidava o seu estatuto em Bruxelas, estabelecendo um círculo virtuoso de influência transatlântica e intercontinental que moldou dinâmicas globais.

Lamentavelmente, quatro décadas após a sua adesão à UE, o país sucumbiu aos fervorosos clamores que nortearam o Brexit, abraçando uma visão que não passou de frágil construção retórica. As proclamações eloquentes de então pouco fizeram para preparar o país para as complexidades de uma actuação solitária no palco mundial.

É sabido que o RU possui uma base tecnológica robusta, tendo ultrapassado a Alemanha, a França e a Suécia na criação de unicórnios (isto é, start-ups cujo valor ultrapassa o bilião de dólares), ocupa a quarta posição no Índice Global de Inovação, lidera o Índice de Possibilidades Futuras e detém um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Estas vantagens, entre outras, conferem ao país um papel não despiciendo de interesse na arena mundial (Global Innovation Index, Future Possibilities Index).

Dito isto, urge reconhecer que o Brexit não alterou os interesses fundamentais do reino: a preservação de uma ordem internacional firmemente ancorada em valores democráticos, preocupações de Defesa e de Segurança indissociavelmente ligadas às da Europa, bem como imperativos económicos inelutáveis vinculados à UE.

Starmer hesitará, contudo, em estabelecer laços de cooperação profunda e formal com a UE e, por sua vez, Bruxelas manterá a porta apenas parcialmente aberta enquanto o RU permanecer à margem. É provável, no entanto, que se alcancem objectivos relativamente acessíveis, tais como o reconhecimento mútuo de qualificações profissionais e intercâmbios no plano educacional - avanços significativos, porém não-transformadores.

Paralelamente, a participação activa do RU na resolução de complexos desafios europeus, particularmente evidente no apoio consistente a Kiev perante o conflito ucraniano, deverá não apenas persistir, mas potencialmente intensificar-se, especialmente se os ventos políticos nos EUA favorecerem o retorno de Donald Trump ao poder.

Em termos bilaterais, Starmer tem sido diligente na formação de alianças - com o chanceler alemão Olaf Scholz lançou uma base sólida para futuros acordos de Segurança e Defesa e outras parcerias estratégicas antes das eleições (Politico) - tarefa que prosseguirá inabalavelmente.

A transição operada a nível governamental, num contexto de incerteza geopolítica e de alianças em mutação, transcende a mera mudança de guarda, convidando o RU a redefinir o seu destino e a fortalecer o seu legado através de renovada visão que harmonize as exigências do presente com as lições advindas do passado. À medida que as sombras do Brexit se dissiparem, emergirão, com o tempo, oportunidades de reconciliação com a Europa. Até que essa aproximação se concretize a Nação oscilará, suspensa, como outrora profetizado por Acheson, entre o esplendor de um passado glorioso e um futuro incerto.

Nota: A autora não escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt