Da escuta altiva à escuta activa

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"Como é ser mulher negra em Portugal?” A pergunta, de uma jovem mulher branca, interpela-me durante a participação numa conversa de “digestão” do documentário Alcindo, promovida pela Frente Anti-Racista. Ali, entre leituras cruzadas do filme de Miguel Dores, partilhei a minha experiência, não por me considerar mandatária das mulheres negras em Portugal, mas por reconhecer que as principais aprendizagens que faço sobre vidas e realidades diferentes da minha vêm de encontros com pessoas que representam essas pluralidades.

Foi assim que, no último fim-de-semana, ainda a processar a violência dos planos exibidos no ecrã, expliquei que passei a maior parte da minha vida alienada das lutas feministas, porque foi exclusivamente a partir da minha condição de pessoa negra que conheci a opressão, a desigualdade, a subalternização e a desumanização.

O efeito é demolidor, e os exemplos que o confirmam não páram de acontecer. Ainda há pouco me cruzei com mais um, partilhado por uma mulher negra que, apesar de estar a fazer tudo o que tem ao alcance para educar a filha a amar cada pedaço da sua negritude, tem de enfrentar a oposição de um sistema programado para privilegiar a pele branca, e depreciar e perseguir a negra.

Afinal, como explicar que uma criança, ainda em idade pré-escolar, se saia com um “Mãe, não gosto da minha cor”, quando, em casa, está rodeada de livros, desenhos animados e conversas sobre a sua beleza e inteligência?

Ser mulher negra em Portugal é ter de lidar com isso. É ter de confrontar o professor que sugere aos nossos filhos uma via de ensino profissional, “por ser a mais fácil”. É ter de ouvir lições sobre a melhor forma de apresentar o cabelo. É ter de explicar a mulheres brancas que a nossa condição feminina vai além da nossa cor. É saber que o rótulo “agressiva” se cola ao primeiro sinal de desentendimento. É não caber nos padrões de beleza, mas liderar rankings de hiper-sexualização. É ser invisibilizada na sua intelectualidade, e visibilizada na sua subalternidade. É ter de ultrapassar dinâmicas de silenciamento.

Não sei quanto disso sobressaiu na minha resposta à pergunta “Como é ser mulher negra em Portugal?”, mas quero acreditar que fui escutada, à imagem do que faço questão de fazer sempre que tenho a possibilidade de sair da minha bolha.

Lembro-me, por exemplo, de como, num painel de discussão sobre feminismos, me confrontei, pela primeira vez, com a diferença entre mobilidade reduzida e condicionada. Agradeço à Lia Ferreira, coordenadora da Estrutura de Missão para a Promoção das Acessibilidades, a oportunidade de reflexão. Foi a partir da sua intervenção que troquei a ideia de redução pela de condicionamento de mobilidade.

O racional é simples: enquanto a primeira formulação me remete para uma certa menorização, colocando o ónus na pessoa, a segunda abordagem reconhece o impacto de influências externas para essa condição.

Escrito de outro modo, depois desse encontro deixei de olhar para os movimentos de alguém que está numa cadeira de rodas como limitados, e passei a reflectir sobre o facto de continuarmos a construir sociedades que nos limitam.

Seja na forma como nos deslocamos, seja na maneira como nos desenvolvemos.

Não me esqueço também de como durante meses fiquei a matutar neste testemunho: “Todos os homens gay que conheci na minha adolescência - nessa altura apenas da comunicação social - adoeciam e acabavam por morrer de Sida. Eu não queria ser gay, porque não queria morrer”.

Ouvi o relato numa conferência, entre apelos a uma maior consciencialização para a importância de combater estigmas e trazer novas possibilidades e, com isso, respeitar e acolher todas as orientações sexuais. Fez-me reflectir sobre as imagens e mensagens que associo automaticamente a pessoas gay, desconstruindo-as.

Admito que, para quem nunca sofreu discriminação simplesmente por ser quem é, possa ser mais complicado entender como se quebram longos silêncios para, “de repente”, se desatar a falar sobre tudo. A todas essas pessoas, recomendo um exercício tão simples quanto potencialmente complexo: larguem a escuta altiva, e adoptem a escuta activa.

Talvez percebam que o movimento social do “agora não se pode dizer nada” assenta tão-somente na incapacidade de aceitação de vozes contrárias, e na dificuldade de reconhecer a grupos historicamente sub-representados o seu lugar de fala. Experimentem escutar. Pode ser que descubram que não ofende ninguém.


Escreve ao abrigo da antiga ortografia.

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