'Coração das trevas'

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Todas as atenções estão centradas nas guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, mas há um outro conflito que continua a matar, e muito, e que parece esquecido, mesmo que até Donald Trump já tenha dito que “é um problema muito sério”. Estou a falar da guerra na região dos Grandes Lagos Africanos, nomeadamente em duas províncias da República Democrática do Congo (RDC), o Norte-Kivu e o Sul-Kivu. Nas últimas semanas as duas capitais provinciais foram tomadas pelo M23, um movimento rebelde que diz lutar pelas populações do Leste da RDC, esquecidas pelo governo de Kinshasa, mas que é associado ao tráfico de coltan e visto como uma milícia ao serviço do Ruanda.

Em Goma, fala-se de mais de dois mil mortos, com figuras da Igreja Católica a denunciar a violência do ataque de final de janeiro. Em Bukavu, que caiu no fim de semana, a retirada das tropas governamentais terá evitado novo banho de sangue, e até há relatos de aplausos nas ruas ao M23, o que pode ser explicado pelo medo da população, mas talvez também pelos abusos atribuídos ao Exército congolês, aos seus parceiros do Burundi e ainda às milícias aliadas.

Há poucas certezas neste conflito. Que na verdade é uma nova fase de um conflito que dura há pelo menos 30 anos, e que tem origem no genocídio no Ruanda em 1994. O M23 é constituído sobretudo por tutsis, descendentes de refugiados que procuraram na RDC a salvação. Os ruandeses dizem que, no lado governamental, há recurso a milícias constituídas por hutus, também refugiados de guerra, mas cuja fuga teve que ver com a associação da sua etnia ao regime genocidário.

Também desse momento terrível vem a força atual do Ruanda, com Paul Kagame a derrubar o poder hutu e a impor um novo regime que tem fama de liderar um dos mais organizados países de África e certamente um dos com Forças Armadas mais capazes. A própria RDC reconquistou o nome de Congo por causa da rebelião fomentada a partir do Ruanda nessa época e que levou à queda, em 1997, de Mobutu Sese Seko, que tinha rebatizado de Zaire o segundo maior país de África.

Além da utilização do elemento étnico, a guerra no Leste da RDC envolve também interesses económicos, pois o coltan é essencial a muitos produtos tecnológicos, a começar pelos telemóveis. A maior mina de coltan está nas mãos do M23 desde o ano passado e esse controlo coincidiu com um forte aumento de exportações desse minério pelo Ruanda.

É impossível que o mundo exterior não perceba a fragilidade do presidente Félix Tshisekedi, que governa a 2500 quilómetros por estrada dos Kivus (1500 por avião), em conseguir assegurar a soberania sobre um território tão remoto e tão complexo como é a RDC. Tal como não é possível que os meios empresariais globais desconheçam todos os males que se fazem pelo controlo do coltan e outros minérios em que a RDC é rica.

A União Africana, agora encabeçada pelo presidente angolano João Lourenço, já se mostrou preocupada e pensa em promover negociações entre Kinshasa e Kigali, mas muitos Estados-membros têm outras prioridades. A ONU, durante décadas com uma presença militar pouco efetiva, continua a tentar ajudar milhões de deslocados internos, mas tem cada vez menos recursos no terreno. Os apelos do próprio Papa Francisco, muito ouvidos num país em que os católicos são metade dos mais de 100 milhões, pouco efeito têm, dada a deriva de violência nos Kivus.

Joseph Conrad escreveu o seu célebre Coração das Trevas a pensar no imenso Congo, um país com uma História terrível antes e depois da independência. E não falta quem fale dos crimes feitos em nome de Leopoldo II ou das atrocidades a mando de Mobutu. Mas é na RDC de 2025 que as atenções se deveriam centrar. Alguma forma haverá de se tentar ali a paz que bem ou mal se procura fazer na Ucrânia ou no Médio Oriente?

Diretor-adjunto do Diário de Notícias

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