Conhecimento e condições para uma reforma da Justiça

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Toda a política pública requer a mobilização de informação e conhecimento para definir com clareza e rigor o problema, os seus contornos e as suas causas, mas também para desenhar as soluções possíveis e as decisões a tomar. Em regra, existem várias visões sobre os problemas e as soluções, refletindo-se esse pluralismo em acesas controvérsias. Se são difíceis os consensos sobre a natureza dos problemas e as suas possíveis soluções, mais difíceis são os processos de negociação e de criação de condições políticas para a concretização das decisões.

Há áreas da intervenção pública em que a resolução dos problemas é mais difícil. Ou porque não há conhecimento e informação para informar a decisão, ou porque o campo está tomado por dinâmicas alimentadas por grupos de interesse com visões divergentes e extremadas. Pergunto-me muitas vezes por que tem sido tão difícil encontrar soluções e resolver os problemas da Justiça? Falta conhecimento e informação sobre os problemas ou as soluções? Faltam condições políticas para a sua concretização? O que falta?

1. Conhecimento sobre os problemas da Justiça em Portugal não falta. Desde meados dos Anos 90 que se multiplicaram os livros sobre o estado da Justiça no Portugal democrático. Destaco alguns exemplos: os livros pioneiros Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas, coordenado por Boaventura Sousa Santos, Maria Manuel Leitão Marques e Pedro Lopes Ferreira, e Justiça em Crise? Crise da Justiça, coordenado por António Barreto, publicados, respetivamente, em 1995 e 2000. Mais tarde, em 2003, o livro Interrogações à Justiça, coordenado por António Araújo, Daniel Proença de Carvalho, Francisco Sarsfield Cabral, Gomes Canotilho e Sofia Pinto Coelho. Mais recentemente, em 2017, o livro 40 Anos de Políticas de Justiça em Portugal, publicado em 2017, coordenado por mim, Maria de Lurdes Rodrigues, com Nuno Garoupa, Pedro Magalhães, Conceição Gomes e Rui Guerra Fonseca.

Estes livros têm em comum o facto de resultarem da compilação de estudos, pareceres, análises, reflexões, opiniões e testemunhos de peritos, académicos, políticos e operadores do Sistema de Justiça como juízes, advogados, procuradores do MP, membros dos conselhos superiores, e dirigentes de sindicatos. Contêm visões externas e internas do Sistema de Justiça, análises críticas plurais e estudos descritivos baseadas em dados e informações. Contêm diagnósticos e propostas de soluções, incidem sobre as diferentes componentes do complexo Sistema de Justiça, desde os corpos legislativos aos tribunais e ao Ministério Público, e discutem a organização, funcionamento e gestão das instituições.

Se aos livros juntarmos a produção de inúmeros artigos especializados ao longo das últimas décadas, por diferentes autores, ou ainda os relatórios e estudos comparados publicados por organismos internacionais como a OCDE, podemos dizer que não nos falta conhecimento plural sobre o funcionamento do Sistema de Justiça e os seus problemas principais. Se não nos falta conhecimento, escasseia consenso, quer sobre a natureza e as causas dos problemas, quer sobre as possibilidades da sua resolução. De diferentes visões sobre os problemas resultam em geral soluções diferentes, muitas vezes com sentidos opostos. Porém, é consensual que existem problemas e que estes residem principalmente na Justiça Penal, sobretudo no domínio da investigação, bem como na Justiça Administrativa e Fiscal.

A existência de problemas graves, que colocam em risco o Estado de Direito e as liberdades e garantias dos cidadãos, é confirmada pela divulgação, com aparato mediático, de casos que revelam aos cidadãos procedimentos e modos de aplicação da legislação: as buscas domiciliárias por arrasto, as prisões preventivas ou detenções para investigar, a quebra do segredo de justiça e os julgamentos na praça pública, a desproporção dos meios mobilizados para recolha de material ou documentos, a construção de megaprocessos intermináveis que tornam ineficaz a investigação, impossível a acusação e o julgamento em tempo útil, os erros da acusação e a falta de profissionalismo ou mesmo de competência na investigação, a incapacidade para triar e avaliar a pertinência das denúncias ou indícios de natureza subjetiva. Tudo acompanhado de artigos de opinião e declarações públicas de peritos, de advogados, de profissionais e membros das corporações, de operadores judiciários, de ex-responsáveis e ex-dirigentes do Sistema de Justiça, confirmando que os problemas que colidem com os princípios do Estado de Direito residem, sobretudo, nos domínios da Justiça Penal, Administrativa e Fiscal.

2. A resolução destes problemas tem sido ao longo dos anos muito difícil por várias razões. Destaco quatro.

Em primeiro lugar, generalizou-se a ideia de que o Sistema de Justiça não é parte do poder político democrático - à Justiça o que é da Justiça e á política o que é da política. Porém, o poder judicial (tribunais) é parte do sistema político, a par do poder legislativo (Parlamento) e do poder executivo (Governo). Os três poderes constitucionalmente instituídos são separados e gozam de autonomia, não sendo admissíveis interferências mútuas, isto é, interferências do Governo ou do Parlamento na atividade das instituições da Justiça (politização da Justiça) ou interferências da Justiça na atividade do Parlamento ou do Governo (judicialização da política). Apesar da definição das políticas de justiça, da organização e funcionamentos das suas instituições e da atribuição de recursos humanos e financeiros serem competências dos poderes legislativo e executivo, todas as propostas de solução apresentadas (veja-se o caso do Compromisso com a Justiça proposto pelo PSD) são geralmente entendidas como ataques à autonomia do poder judicial por parte de governantes e deputados.

Em segundo lugar, o fechamento corporativo alimentado pelo ativismo de dirigentes sindicais. O fechamento impede a maioria dos agentes do Sistema de Justiça de reconhecerem sequer a existência de problemas, colocando-se num estado de permanente negação. Sustenta, ainda, uma argumentação que transforma os críticos, isto é, todos aqueles que criticam, observam ou apresentam alguma sugestão de reforma da Justiça, em “outros”, em inimigos (vejam-se as reações ao Manifesto dos 50 subscrito por vários cidadãos).

A terceira dificuldade é a paralisia provocada por desconfianças cruzadas. A abertura discricionária de inquéritos pelo Ministério Público, que criminalizam decisões tomadas por titulares de cargos públicos ou políticos, ou a propostas de legislação no Parlamento, generalizaram um clima de desconfiança, de suspeição sobre a atividade política, que provoca a paralisia e impede a procura de soluções. Nomeadamente quando se prolonga no tempo, sem fim à vista. A existência de um processo que envolve um ex-primeiro-ministro, cuja investigação se arrasta há mais de 10 anos, tardando a acusação e o julgamento, alimenta aquela desconfiança, quando a sua resolução em tempo útil poderia libertar o país do peso da suspeição que alastra a toda a classe política.

Finalmente, o quadro da opinião pública. A Justiça-espetáculo, ao contrário do que se poderia supor, não beneficia ninguém. É prejudicial à imagem das instituições de Justiça e dos seus operadores, como é prejudicial às restantes instituições democráticas, porque alimenta opiniões negativas sobre a atividade política em geral. Mas, sobretudo, torna muito difícil o debate público rigoroso, construtivo e informado de que necessitamos.

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