Combater o retorno à velha lei do mais forte
As andanças profissionais pelo mundo das organizações multilaterais, e por dezenas de países com culturas políticas diversas, ensinaram-me a olhar para as relações internacionais com prudência. Isto não quer dizer que não acredite no respeito pelos valores e pelos princípios aprovados ao longo dos tempos, nomeadamente desde a assinatura da Carta das Nações Unidas. Assim tem acontecido com a maioria dos Estados. Mas, contrariamente ao que muita gente pensa, foram muitos os conflitos que ocorreram desde 1945. Terá sido um tempo de paz na Europa, exceto nos Balcãs, mas não noutras partes do mundo. Por isso, o bom senso recomenda-nos cautela, pois as rivalidades entre os países e entre os chefões perduram.
Prudência significa, acima de tudo, duas coisas: por um lado, nunca subestimar o adversário e, por outro, cultivar sem ambiguidades as relações com os aliados, a partir de interesses mútuos e de uma visão política comum.
É um erro muito sério considerar que o inimigo pode ser facilmente derrotado. Este foi, aliás, o erro de cálculo original de Vladimir Putin, que julgou possível destruir a soberania ucraniana em três dias, quando a coluna militar gigantesca que despachou contra Kiev chegasse ao Palácio Mariyinsky, a residência oficial do presidente Volodymyr Zelensky. A “Operação Especial” era isso mesmo, no entender do ditador russo: uma incursão rápida, capaz de subjugar o país vizinho numa questão de dias. Não chegaria a ser uma guerra. Subestimou a Ucrânia, que três anos depois continua a resistir à agressão.
É igualmente um erro não investir numa relação diplomática estreita e interdependente com os países com quem mantemos uma aliança de Defesa e de cooperação estratégica. E que consideram, como nós, que a liberdade individual e os Direitos Humanos são questões prioritárias. Esse investimento passa, nomeadamente, por um equilíbrio de forças entre os aliados, em que cada um traz para o esforço coletivo algo de verdadeiramente essencial. E deve assentar num entendimento similar do contexto internacional. Quando houver desequilíbrios ou uma leitura diferente dos riscos externos, a aliança acabará por se transformar em subordinação, ou terminar numa rutura. A sua continuidade será uma ilusão.
Um pacto entre desiguais deixa de funcionar quando surge uma crise de grandes proporções. Essa é a realidade que a Europa tem agora pela frente. Em matéria de Defesa e de tecnologias de ponta, sobretudo nas áreas da Inteligência Artificial e da coleta de informações estratégicas, a fragilidade europeia perante os EUA é incomensurável.
Apesar das promessas políticas dos principais Chefes de Estado e de Governo europeus e dos milhares de milhões anunciados pela presidente da Comissão Europeia, o fosso entre os dois lados do Atlântico é intransponível nos próximos anos. E assim continuará durante o mandato de Trump, o que quer dizer que a Europa estará durante todo esse período bastante à mercê das decisões do presidente americano.
Pagará assim a imprudência de ter considerado, sobretudo desde o fim da Guerra Fria, que Washington era um escudo de proteção, seguro e de confiança, e que a sua classe política continuava a manter uma ligação cultural e sentimental inquestionável com os países do continente europeu. Na América de hoje, esse vínculo faz parte do passado.
Com Trump no poder, o contexto ficou ainda mais claro. Ele e os seus vêem a Europa como um mercado de consumidores com dinheiro e recursos que são determinantes para o reforço da hegemonia mundial dos EUA: as terras raras da Ucrânia, os minérios da Gronelândia, o arquipélago norueguês de Svalbard, fundamental para controlar a navegação através do Ártico, a ligação entre o Atlântico Norte e o Mar do Japão.
A Europa é tida como um continente capturado, refém, destinado a responder às exigências da nova América, a América que olha para o mundo com soberba, exceto se se tratar da China ou da Rússia.
Este é contexto em que a Europa se encontra. A Europa da Defesa, prudente e capaz de tomar conta da sua própria segurança, terá, de facto, de ser construída, coisa para demorar entre dez e 15 anos, no mínimo, até ganhar força. É, para já, um desejo.
Reconheço que vale a pena ter desígnios deste tipo. Dão alento, definem um objetivo que pode ser partilhado e consolidar a convergência. A geração que agora está a atingir a maioridade política terá como desafio transformar essa exigência numa realidade.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU