Coisas avulsas sobre a teoria do mérito

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Li, no ano passado, um livro muito interessante escrito por um professor de Harvard: A tirania do mérito. Um dia destes, ao arrumar a estante, caiu ao chão, abrindo-se ao acaso numa página, da qual li a seguinte passagem: "Nas últimas décadas o discurso público tem sido dominado pela linguagem do mérito, sem que o seu lado negativo seja reconhecido." A lógica é a de que "aqueles que trabalham arduamente e cumprem as regras devem chegar até onde os seus talentos os levarem". A relevância do moral do esforço subjacente a esta asserção esquece os contextos de origem e as desigualdades existentes à partida. Para o confirmar basta pensar na correlação várias vezes demonstrada entre o nível social e insucesso escolar. Vem isto a propósito dos rankings das escolas que todos os anos as ordenam em função das notas obtidas nos exames nacionais sem ter em conta o contexto e a origem sociocultural dos alunos. Fazem-se grandes títulos com uma aparente competição em que as escolas privadas ficam sempre à frente. Esta forma de publicidade muitíssimo ampliada pelos meios de comunicação social acaba a favorecer o negócio da educação, negócio este que de qualquer maneira só se aplica a pessoas com um certo nível socioeconómico. Não existe, na maior parte das notícias, um trabalho analítico mais detalhado nem tão pouco informações sobre certo tipo de seleções que por vezes são feitas por alguns colégios em relação à entrada dos alunos. Só para dar um exemplo, as crianças com necessidades educativas especiais frequentam, na maior parte dos casos, escolas públicas. Mais interessante é, apesar de tudo, o ranking da superação das escolas no qual as médias dos exames de cada estabelecimento são comparadas com as obtidas noutros que tinham características semelhantes. Esta comparação pode colocar em evidência possíveis práticas pedagógicas que, pela sua eficácia, merecem a pena serem reforçadas.

A confirmar que a teoria do mérito tem algo de chalaça estão os dados da Direção Geral de Estatística da Educação e Ciência que, com o mesmo ritmo de repetição demonstram como o insucesso educativo está associado à pobreza. A situação de vulnerabilidade familiar - carências ao nível da satisfação de necessidades básicas, menor possibilidade de apoio à escolaridade das crianças, problemas de desemprego ou rendimentos muito baixos - está reiteradamente associado ao desempenho académico das crianças. Por sua vez, o insucesso escolar está ligado a maior risco de abandono escolar precoce, empregos mal remunerados, piores indicadores de saúde, bem-estar social e participação cívica. Sabendo-se, igualmente que a escola não está a funcionar em termos de elevador social, como já chegou a funcionar.

As questões do mérito, que tantas vezes aparecem nos discursos públicos, e mesmo políticos, serão bem mais complexas do que a relação linear subjacente à ideia de que "quem se esforça mais tarde ou mais cedo verá o seu mérito recompensado". Na verdade, está longe de ser assim e a mobilidade social parece demorar gerações. No entanto, as mentes gostam de caminhos curtos, automatismo, categorias estereotipadas, relações lineares de causa-efeito pelo que essa ideia feita, como tantas outras, continua a fazer sucesso e a fazer eco em muitas audiências.

Escritora e Professora do Ispa – Instituto Universitário

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