Carta de Viena

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Por muito que tenhamos lido e sonhado sobre elas, as cidades de onde não falamos a língua ganham uma opacidade ao nosso olhar mais atento, uma resistência ao nosso diálogo com elas, que é difícil superar.

Aqui não tenho sessões nem palestras, só mesmo fortes laços familiares me trazem de novo a esta cidade, que evoca, para mim, a Cacânia de Musil, O Mundo de Ontem de Zweig ou o apocalipse feliz de Herman Broch. Mas os jornais e as revistas estão-me fechados e é neles que se sente o pulsar atual da vida.

Bom, a extrema-direita aqui foi afastada do poder, após um escândalo que metia dinheiros russos (muito ativos aqui) e vários negócios escuros. No entanto, o partido da extrema-direita (FPO) está muito à frente em todas as sondagens, ao ponto de o escritor austríaco Peter Menasse ter assumido na Feira do Livro de Bruxelas (numa sessão de que falei em crónica anterior) que em breve o seu primeiro ministro seria da extrema-direita.

A extrema-direita, continuando a ser essencialmente soberanista, admite hoje jogar o jogo europeu, desde que consiga arrastar o centro-direita para posições conformes às suas (e Manfred Weber, do PPE, parece ser defensor dessa aliança). Veremos o que as eleições europeias nos irão trazer e em que medida o centro-direita poderá fazer face a políticas que são a negação expressa do projeto e do ideal europeu.

Vou a meio da crónica e já me falta o assunto. Recorro às notícias da pátria, trazidas pela indispensável internet. As comemorações do 25 de Abril ocorrem por todo o lado, negando a visão pessimista que em tempos exprimi sobre a sua visibilidade num quadro político tão cheio de novidades como o atual. Para além do notável trabalho de Maria Inácia Rezola e da sua equipa, creio que esta multiplicidade de comemorações mostra que há uma vontade na nossa sociedade de reafirmar os valores da democracia e da liberdade contra todos aqueles que a querem pôr em causa.

Tenho pena de não estar em Lisboa, para poder descer a Avenida da Liberdade na manifestação que espero grandiosa e esmagadora. Eu comemorarei o 25 de Abril por terras de França, com a nossa comunidade, que faz parte também dos vencedores de abril.

O estrangeirado, quando volta a Portugal, sente que, por muitas mostras sinceras de amizade e de solidariedade que receba, uma distância continua a existir entre ele e os que ficaram. Isto não tolda as amizades, nem as solidariedades, apenas lhes inscreve essa marca de distância que o tempo criou. Voltar a sair da pátria é para o estrangeirado a confirmação de que aqui fora respira com mais naturalidade. Não é melhor, nem pior: é apenas mais natural. E a própria saudade se inscreve nessa distância irrevogável (que palavra esta!...).

A própria saudade é feita deste misto de pena de não estar e de alívio por não estar, que é próprio das almas estrangeiradas.

E evoco os versos de Manuel Alegre, de quem espero ler as memórias, mal regresse a Portugal:

Quando desembarcarmos no Rossio canção
Vão dizer que a rua não é um rio,
Vão aprisionar o teu navio
Carregado de vento carregado de pão.

E contudo desembarcámos!

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