Caro amigo, a paz é uma questão muito séria!
Quem me lê, ouve ou conhece, sabe que tenho uma admiração inqualificável pelo presidente Donald Trump. Uma vez mais, esta semana, o presidente não me desapontou. Entre duas tacadas de golfe, na sua extravagante propriedade na Florida, onde Luís XIV igualmente se sentiria Rei Sol, e depois de umas horas de canapé, em frente de um ecrã gigante de televisão, lembrou-nos de que, nas suas contas, a popularidade de Volodymyr Zelensky junto da opinião pública ucraniana rondaria não mais do que 4%. Esta percentagem deita por terra os 57% que o prestigiado Instituto Internacional de Sociologia de Kyev publicou no mesmo dia. Trump não mencionou a fonte dos seus dados, nem precisa de o fazer.
Vladimir Putin estará certamente de acordo com a percentagem, ou não fosse ele a fonte da patranha. Ele, que já roubou várias eleições, ao longo de mais de duas décadas de poder, fora o tirocínio de quase 16 anos no KGB, precisa de uma afirmação como a de Trump, que faça esquecer as suas falcatruas. E se essa invenção sua for amplificada pelo presidente dos EUA, passará a ter um peso ímpar junto da opinião pública russa.
Na mesma conferência de imprensa, o presidente Trump tomou como suas as condições e as linhas vermelhas que Putin tem repetido nos últimos três anos. Não à adesão da Ucrânia à NATO. Sim à usurpação de território ucraniano pela Rússia. Substituição do presidente Zelensky por um líder subordinado ao Kremlin, conseguindo assim transformar o país num Estado-vassalo de Moscovo, ao estilo da Bielorrússia. Reforma da arquitetura de Defesa da Europa democrática, de modo a reduzir a NATO a um rafeiro desorientado, medroso e incapaz de se opor às ambições imperialistas do urso russo. Reconhecer que a Europa Oriental e Central fazem parte da zona de influência geopolítica da Federação Russa. Acabar com as sanções, para voltar a colocar a Rússia na posição económica de grande abastecedor de matérias-primas, uma espécie de Congo de luxo que faz enriquecer quem controla os sectores extrativos e permite subsidiar a vodka do resto da população e corromper as Forças Armadas. E, para colocar uma cereja no topo do bolo, Trump acaba de repetir o que o foragido Putin tem mandado dizer recorrentemente: que Zelensky seria um ditador, um presidente sem mandato eleitoral.
Se não fosse a minha néscia admiração pelo inenarrável, diria que as palavras de Trump são um terramoto seguido de um tsunami. Como se pode querer organizar eleições livres e justas na Ucrânia, vítima de uma guerra de agressão terrível, quando o brigão da porta ao lado envia dia e noite centenas de bombas e tropas com o objetivo de destruir o país vizinho?
O grande líder tem muito jeito quando se trata de servir de eco a Putin. Igualmente, quando a intenção é confundir ou intervir na casa dos aliados. Chama plano de paz à aceitação das principais condições impostas pelo inimigo, à capitulação. Assim aconteceu perante os terroristas talibãs, em 2020, quando tudo foi negociado pela equipa de Trump sem a participação do governo de Cabul e dos aliados, que durante anos combateram no Afeganistão ao lado dos americanos.
Estamos num período de grande confusão. Por isso, não estranhem que escreva que também tenho uma grande admiração por Volodymyr Zelensky. Três anos depois do início da criminosa agressão russa, e apesar dos meios limitados de que dispõe, continua a usufruir do apoio dos seus concidadãos e de um raro prestígio internacional. Tem revelado uma determinação, clarividência e coragem exemplares. Lembra-nos que a Ucrânia resiste com patriotismo e argúcia contra a violência de um vizinho bem mais poderoso militarmente, que viola há anos as regras básicas da lei internacional: o respeito pela soberania, pela integridade territorial da Ucrânia e a proibição do uso da força.
A minha admiração provém igualmente da verdade que o presidente Zelensky imprime a cada uma das suas palavras. Sublinha que não haverá paz sem o acordo dos ucranianos. Que Trump pretende uma compensação absurda: 500 mil milhões de dólares em minerais raros para compensar uma ajuda militar e outra de natureza orçamental que, até agora, não ultrapassam uma pequena parte desse valor, uns 20% apenas: que grande negócio! E que conta com a Europa, cuja ajuda já equivale a 132 mil milhões de euros, muitos deles gastos na compra de equipamento militar americano. Um volume de cooperação vindo da Europa bem superior, mas com os EUA a beneficiarem da coisa, no comércio de armas e munições.
Na próxima semana, Keir Starmer e Emmanuel Macron irão juntos a Washington. Creio que será uma viagem bem-intencionada, diplomaticamente compreensível, mas inútil. Pode mesmo ser humilhante para ambos.
O futuro da Europa cabe aos europeus. No contexto atual, joga-se deste lado do oceano e sem demoras. E quem não tem cão, caça com gato.
Conselheiro em segurançainternacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico