Caravaggio a preto e branco

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Na prodigiosa mini-série Ripley (Netflix), Tom Ripley vai pontuando as muitas ambiguidades do seu mundo de máscaras e mentiras com a extasiada observação da pintura do italiano Caravaggio (1571-1610). A sua erotizada contemplação - “la luce”, repete ele como se estivesse a descrever um pecado inconfessável - é tanto mais sensível quanto Ripley se faz com imagens a preto branco, com assinatura de Robert Elswit, genial director de fotografia já “oscarizado” pelo seu trabalho em Haverá Sangue (2007), de Paul Thomas Anderson.

Na cena em que Ripley abre um álbum dedicado a Caravaggio, há uma pausa das mãos perante uma reprodução de A Vocação de São Mateus (1599-1600). Vem a propósito uma afirmação de Denis de Rougemont que Jean-Luc Godard cita na sua derradeira longa-metragem, O Livro de Imagem (2018). A saber: “A verdadeira condição do homem é de pensar com as suas mãos” (recorde-se que Denis de Rougemont publicou o livro Penser avec les mains em 1935).

O fascínio de tudo isto multiplica-se perante o preto e branco, dir-se-ia “dispensando” a textura cromática de Caravaggio. Claro que Ripley envolve uma memória nostálgica do grande cinema “noir” de Hollywood, consolidado através de clássicos como Relíquia Macabra (1941), de John Huston, ou À Beira do Abismo (1946), de Howard Hawks. Ainda assim, tal inspiração não parece suficiente para, pelo menos, descrevermos aquilo que acontece na mini-série.

A odisseia de Tom Ripley revisita a pintura de Caravaggio.

As memórias de Caravaggio pesam na história de Ripley, não tanto como uma caução artística, antes como “coisas” que transportam uma  essencial duplicidade: aquilo a que chamamos “reprodução” coexiste com as incertezas que provêm de um universo habitado por fantasmas. Apesar de vocacionado para os ecrãs caseiros, Ripley pertence, de facto, a um universo visceralmente cinematográfico: ao contrário do carácter pueril de muitas formas de fazer televisão, a imagem não ”duplica” o que quer que seja, antes reconverte e, de alguma maneira, diversifica os modos de ver e habitar o mundo.

Um dos efeitos mais directos, e também mais paradoxais, desta visão consiste na revalorização das palavras como matéria fulcral da narrativa audiovisual. Enfim, não podemos esquecer que estamos perante uma adaptação de O Talentoso Mr. Ripley, de Patricia Highsmith, romance de 1955 em que a autora introduz a personagem de Tom Ripley (existe uma tradução de Mário-Henrique Leiria, editada pela Relógio d’Água, 2013). Sem esquecer que os diálogos de Ripley encontram no seu notável elenco - com inevitável destaque para Andrew Scott no papel central - os tempos e as nuances de uma acção de vertiginosa lentidão que passa sempre por aquilo que as palavras revelam ou escondem, aliás, revelam e escondem.

É certo que os grandes estúdios de cinema continuam a privilegiar caríssimas produções de super-heróis e afins. Face a tal conjuntura, o aparecimento de Ripley no espaço da Netflix lembra-nos que não é possível compreender as actuais dinâmicas de produção através da oposição moralista entre “arte” e “comércio”. Afinal de contas, o autor e realizador da mini-série, o americano Steve Zaillian, é também uma figura exemplar de tais dinâmicas.

Realizador de outra série admirável, The Night Of (HBO, em coprodução com a BBC), Zaillian é um talentoso artesão que tem evoluído através de inusitados contrastes criativos. O seu reconhecimento no interior da indústria deu-se com a escrita do argumento de A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, trabalho que lhe valeu um Óscar referente a 1993. No mesmo ano, estreou-se na realização com o maravilhoso Searching for Bobby Fischer/Jogada Inocente, sobre um pequeno génio do xadrez, filme que quase todos os mercados (incluindo o português) trataram com metódica indiferença. Recusando barreiras convencionais, apetece dizer que, com as cerca de oito horas que duram os episódios de Ripley, Zaillian assinou também aquele que é um dos grandes filmes de 2024.

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