Campanha eleitoral: discutir apenas o sexo dos anjos
Anda por aí uma controvérsia sobre as matérias que devem ser discutidas na campanha eleitoral. Há dias o jornal Público, num texto assinado por Ana Sá Lopes, puxava para título “O caso Montenegro vai ser o tema da campanha”. E depois interrogava: “Queriam outro?”
Esta é uma pergunta muito pertinente.
Sim, queremos o caso Montenegro, mas queremos também, num contexto eleitoral, discutir, genericamente, em toda a sua dimensão, a ética e os princípios no exercício da política. E não apenas uma discussão centrada no caso Montenegro.
A questão do primeiro-ministro está entregue à Justiça. No salutar princípio da separação de poderes entre a política e a Justiça, que António Costa usou em relação a José Sócrates, um destes dias, esperemos que tão depressa quanto possível, a Justiça virá dizer-nos, afinal, o que se passou com a Spinumviva de Luís Montenegro. Há questões éticas? Haverá com certeza! Alegadamente há tráfico de influências ou corrupção? Até ao momento não temos qualquer sinal disso mas, naturalmente, a última palavra caberá à Justiça? E os portugueses terão alguma coisa a dizer sobre isto? Sem dúvida que sim.
Mas centrar a discussão do caso Montenegro na campanha eleitoral quando ele ainda está envolto num manto de indefinições é pouco, na lógica de um esclarecimento nacional. Discuti-lo sem existirem conclusões claras sobre o verdadeiro alcance da actuação do primeiro-ministro na sua componente empresarial e no modo errático como fez a separação dos universos público e privado é reduzir a campanha eleitoral a mínimos olímpicos.
As eleições são o principal pilar estruturante do edifício legislativo. São o sagrado momento político em que é devolvida ao povo a possibilidade das escolhas que vão determinar o futuro do país.
Nas eleições escolhemos os deputados que nos vão representar. Quem são? Têm pensamento próprio ou são meros apparatchiks ambiciosos que vão sacrificar os princípios e a ética à ambição da sua carreira profissional e política?
São candidatos a deputados com um pensamento esclarecido ou carreiristas seguidores acéfalos da cartilha partidária das forças onde estão inseridos?
A escolha de deputados deve ser motivo de reflexão e discussão numa campanha eleitoral. É chegada a hora de os portugueses olharem para as eleições com exigência e rigor, prerrogativas que são necessárias para que no futuro tenhamos um Parlamento de maior qualidade, mais responsável, mais capacitado a enfrentar os desafios nacionais e internacionais que vamos ter pela frente. Exigência e rigor na escolha para que, futuramente, não tenhamos deputados a conduzirem alcoolizados, indiciados por pedofilia ou pelo roubo de malas nas passadeiras de um qualquer aeroporto nacional. Que prestígio pode ter um Parlamento assim?
Discutir apenas a ética de Montenegro não é suficiente. É obrigatório reflectir também sobre o comportamento de Pedro Nuno Santos quando exerceu o cargo de ministro das Infra-estruturas e Habitação e autorizou, por WhatsApp, uma indemnização de meio milhão de euros à então administradora da TAP, Alexandre Reis, tendo entrado em contradição sobre se tinha ou não conhecimento do valor dessa indemnização, o que deu origem à sua demissão.
A próxima campanha eleitoral deve, então, analisar, em geral, as questões éticas de todos os protagonistas políticos incluindo deputados e, em particular, dos dois candidatos a primeiro-ministro.
A campanha eleitoral deve ainda ser, sobretudo, um momento de afirmação de cada uma das forças partidárias apontando soluções para as graves situações que o contexto internacional nos vai colocar no futuro. Mais do que avançarem por uma narrativa de gritaria e uma postura acrítica sistemática de uns em relação aos outros, é bom que os partidos sejam determinantes na afirmação das suas propostas e as coloquem em cima da mesa para que o país, com alguma tranquilidade e bom senso, possa avaliar onde estão as mais profícuas e enriquecedoras para Portugal.
Os tempos não estão, pois, para visões redutoras sobre os conteúdos de uma campanha eleitoral. Há perigosas realidades novas que estão a mudar o mundo, muito rapidamente, numa trajectória de maior incerteza e indefinição. Os tempos estão perigosos.
Reduzir a campanha eleitoral, unicamente, à avaliação ética de Montenegro é introduzir na mesma uma lógica de capitis diminutio. A próxima campanha eleitoral não pode ser mais uma oportunidade perdida para falar apenas do sexo dos anjos.
Jornalista
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico