Camões em carne e osso ou um livro de Helder Macedo

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Helder Macedo é, incontestavelmente, uma das personalidades centrais da cultura e literatura portuguesas da segunda metade do século XX e deste primeiro quarto-de-século. Poeta, ficcionista, professor emérito de Português no King’s College, em Londres, professor-conferencista convidado em universidades da maior envergadura (Oxford, Harvard), é, para além disso, um ensaísta de finíssima inteligência crítica, de enorme erudição, com intuições singulares, dessas que nos abrem uma obra literária às mais fascinantes e insuspeitadas coordenadas de leitura. Sirvam de exemplo dois trabalhos seus: Cesário Verde: O Romântico e o Feroz (&ect, Lx, 1988) ou, publicado em 1977, Do Significado Oculto de Menina & Moça [de Bernardim Ribeiro] (Moraes, colecção Temas e Problemas). Há outros trabalhos ensaísticos de enorme valia para a compreensão das linhas invisíveis de clássicos e modernos portugueses, desde a sua tese de doutoramento, Nós: Uma Leitura de Cesário Verde, à reunião de diversos estudos que, em 2007, vieram a lume sob o título Trinta Leituras. A Editorial Presença tem sido, em diversas fases desta obra, a sua casa-mãe e em boa hora este livro (vencedor do Prémio D. Diniz e do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho APE) é reeditado em nova e aumentada actualização. De destacar, como se lê na nota introdutória, o extraordinário ensaio “Luís de Camões: cada um contrário em seu sujeito”, texto originalmente feito em 2005 aquando a realização do Colóquio “Todos os Caminhos vão dar a Camões”, que teve lugar na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

De um modo geral, o que nos dá o ensaísmo de Helder Macedo? Isto: a evidência de uma inteligência crítica que, em trânsito por diversos “contemporâneos de Camões” (o que inclui, num gesto de originalidade, poetas como Herberto Helder, Cesariny, estes publicados na revista Relâmpago; textos evocativos de Manuel de Castro e da geração, a sua, do mítico café “Gelo”, para além de outras importantes páginas de que vinco a relativa ao seu romance, Partes de África, em contexto de colóquio), se questiona permanentemente e nos questiona: qual o lugar da obra na vida de quem escreve, com que régua podemos medir o alcance de dada herança literária. Uma tese avulta neste belíssimo livro que deveria ser obrigatório na formação de professores: “toda a linguagem é feita de passados e não de futuros.” Isto é: para se ler Camões, como a outros contemporâneos, é ao passado que temos de regressar para reelaborar novas formas de ler. Neste particular, T. S. Eliot é, com um mestre português da leitura - Jacinto do Prado Coelho - uma das fontes do pensamento crítico de Helder Macedo.

O que une este livro de prodigiosas (e generosas) exegeses é, pois, Camões. Há como que uma espécie de entendimento dialéctico do que é a literatura portuguesa centrada no grande épico. Camões obriga-nos a reler os medievais e prepara-nos para entendermos melhor o que veio a ser escrever literatura em português depois dele. Há passagens que, sendo dedicadas ao poeta de “Aquela Cativa”, sugerem que para Helder Macedo a literatura, como via de conhecimento do mundo, é uma implicação do Homem nas coisas que lhe pertencem: carne, razão, sentidos. Mais do que um poeta de preocupações metafísicas, o cantor de Bárbara Escrava atenta na única meta tangível que lhe é ponte para compreender o desconcerto do mundo: a meta física. Leia-se do ensaio “Luís de Camões: Cada um com o seu contrário num sujeito” (dialéctico eco camoniano) o seguinte: “Camões desenvolveu a partir de Dante e de Petrarca a percepção do amor como forma inteligível do desconhecido. Mas, enquanto os seus mestres viam no amor um meio de ascender à unidade de uma ordem espiritual divina obscurecida pela matéria, ele procurou, em sentido inverso, encontrar uma unidade espiritual na multiplicidade da experiência do amor humano.” (p.303).

Na senda das teses de Jorge de Sena (1919-1978), em especial a do seminal “Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoniana” (1950), onde Sena de uma vez para sempre justifica por que razão a verbalização do mundo em Camões é uma verbalização maneirista (o que provocou reacções da camonística oficial da época), Helder Macedo oferece-nos um retrato de Camões que é, de facto, o retrato de quem não só foi o primeiro europeu a experimentar em várias latitudes do globo os “erros [seus], má Fortuna, amor ardente”, como é o primeiro a declarar que o amor - bem ao contrário do neoplatonismo de matriz cristã que lhe molda uma visão de mundo bem oposta à experiência (carnal) dele - faz parte de um complexo humano de vivências que, feitas linguagem, revolucionam a nossa forma não de ver a poesia, mas a própria vida. Por isso Helder Macedo relembra versos do soneto “Em prisões baixas fui um tempo atado”, vendo de forma acutilante a lógica do malogro camoniano. Dialécticos ensaios onde, ainda acerca de Camões, encontramos sínteses de uma rara penetração: “Escreve noutro [soneto] E, por experimentar que dita tinha / quis que a Fortuna em mim se experimentasse. Tal experimentação consigo próprio o levou a “erros” que cruelmente foram punidos com “prisões”, “mágoas”, “misérias”, “desterros” (p.303). Como, porém, esclarece o ensaísta, sempre é o amor o guia de Camões, revelando-se como uma “selvática deidade que se não contenta com sacrifícios simbólicos” (os “cordeiros” e “bezerros” do verso “Que Amor não quer cordeiros nem bezerros” daquele soneto que referi).

Na verdade, percorrendo Camões e contemporâneos, Helder Macedo não esquece que o processo dialéctico de quem lê assim obras literárias tem como fim ultrapassar antinomias, evitar certos escolhos (o impressionismo, o biografismo). Buscando uma conclusão clara para mostrar aos leitores de Camões o modo dialéctico desta poesia, o autor de Vesperal (1956) analisa canções, convoca éclogas, esclarece-nos o sentido de alguns nomes das amadas do Poeta (Dinamene, criptónimo devedor da tradição clássica e já presente em Garcilaso, é uma ninfa do Tejo; Bárbara, onomatopaico nome que Camões, diz Macedo, transforma em “afirmação de identidade própria dessa «estranha» mas, afinal, não bárbara senhora” (p.309). Amor cortês subvertido, como interpreta Helder Macedo essa operação camoniana de transposição-transfirmação de um nome? Como demonstração de uma finalidade: o código do amor cortês já não podia ser seguido como norma: “A linguagem que havia herdado tinha de ser usada para dar expressão a novos significados.”

Neste Verão que agora acaba, reler este livro novo é, creio, continuar a lembrar Camões neste ano de celebração do seu (provável) nascimento em 1524. Há uma coesão e coerência a dar corpo a este livro de Helder Macedo e não será de somenos ver como no estudo que vim seguindo (“Luís de Camões: cada um com seu contrário num sujeito”), e que me parece ser ancilar, as páginas dedicadas a Vasco da Gama - que servem a Macedo para sublinhar o valor das Letras como veículo de eternização dos heróis - complementam, na verdade, o retrato que o ensaísta e poeta nos quer dar do próprio Luís Vaz. No alto mar da linguagem, o batel que é a epopeia, debate-se e Camões - como inteligentemente revela Helder Macedo - dá nova significação a esse empreendimento literário: se o seu batel naufragar, é a própria História que pode eclipsar-se.

Esta última ideia: a de que a História pode eclipsar-se se não houver quem fixe, em versos perenes, a memória pátria, diz respeito também à função do ensaio. Sem ensaístas que nos ajudem a ler melhor as grandes obras, elas igualmente se eclipsam.

Escreve sem aplicação no novo Acordo Ortográfico.

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