Breve história de uma hecatombe anunciada
Em agosto de 2017, o Diário de Notícias deu conta de que a promessa de um contrato de trabalho seria admitida como requisito para que um estrangeiro obtivesse autorização de residência em Portugal. A ordem era para regularizar imigrantes rápido e em força, mesmo que tivessem entrado de maneira ilegal e não cumprissem os critérios até então em vigor.
Esta alteração à lei de estrangeiros, feita sob proposta do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português, e aceite pelo Partido Socialista – geringonça oblige –, implementou-se em dissonância com as políticas em vigor nos demais Estados-membros da União Europeia.
À época, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras soou os alarmes. Surpreendido pela aprovação do diploma, avisou dos riscos de segurança que dele decorriam, ao mesmo tempo que sinalizou a falta de recursos humanos e tecnológicos para enfrentar o previsível aumento na chegada de imigrantes.
O SEF sabia do que falava. Em 2015 vigorara a isenção de vistos de entrada em Portugal, uma peculiaridade nunca bem esclarecida, que teve um efeito-chamada em milhares de imigrantes que estavam em situação irregular noutras partes do território europeu. Na primeira semana da sua entrada em vigor, bateu-se o recorde de novos pedidos: cerca de 12 mil, um crescimento de 1300%.
Muitos pretendiam obter visto de residência em Portugal para circular livremente pelo continente europeu, o que, como é evidente, comprometia os deveres do país com os seus parceiros da União.
Luísa Maia Gonçalves, directora do SEF nomeada em 2016 pelo governo da geringonça, revogou esta orientação. Estavam já pendentes mais de três mil “manifestações de interesse”. Recebeu em troca ruidosos protestos de rua convocados por associações de imigrantes, ajuntamentos tidos como apartidários, mas cuja toada coincidiu sempre com o discurso do Bloco de Esquerda.
A então ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, que tutelou estas e outras alterações à política de estrangeiros e fronteiras, encaminhou Luísa Maia Gonçalves para o patíbulo. Mais uma vez, geringonça oblige. A directora do SEF antecipou-se e saiu com a dignidade do próprio pé.
Urbano de Sousa deixaria o MAI aos tropeções, empurrada pelo Presidente da República na sequência da desastrosa resposta aos incêncios de 2017, os mais letais na história contemporânea do país. Porque a Lei de Lavoisier rege tanto a Física como a política nacional, a ex-ministra integra agora o Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa. Paz e glória.
Sucedeu-a no ministério Eduardo Cabrita, cujo palmarés em matéria de estrangeiros e fronteiras é tão memorável que dispensa resenha histórica. Nem sempre é fácil distinguir a valentia do atrevimento, mas, enfim, tentando encontrar algum mérito na desgraça, reconheçamos a maneira frontal como Cabrita assumiu a continuidade de políticas que se desentendiam das aplicadas no resto da Europa.
E assim chegámos ao Seminário sobre Tráfico de Seres Humanos, realizado na semana passada em Barcelos, no qual Paulo Henriques, diretor na AIMA, afirmou que o fim do SEF foi uma hecatombe. O caos entretanto instalado permite tirar esta conclusão – há muito evidente – sem temor a invectivas.
O fim do SEF, assim como as alterações legislativas que o antecederam, subordinaram o interesse nacional e o bem-estar dos imigrantes a tácticas partidárias e fetiches ideológicos. Hoje temos imigrantes desprotegidos, sujeitos a infernos burocráticos, vítimas de radicalismos com agendas predatórias. E temos também dúvidas legítimas sobre o estado da segurança do país. Como mostra esta brevíssima história, parafraseando António Guterres, as coisas não acontecem no vazio.
Politólogo. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.