Bem-vindos ao caos trumpiano
Não seria possível acreditar que uma vitória clara de Donald Trump nas urnas não teria consequências graves. O pior está mesmo a confirmar-se.
Esta Administração Trump 2.0 será muito pior tecnicamente e muito mais fraca politicamente do que a primeira presidência Trump. Está muito mais dependente dos interesses pessoais do Presidente, decorre de favores a pagar do que foi feito na campanha. Tudo feito à descarada, sem qualquer preocupação de legitimação política ou credibilidade internacional.
No início do mandato 2017-2021, Donald Trump ainda colocou o general Jim Mattis, um experiente e prestigiado oficial de topo da NATO, na chefia do Pentágono. Agora, quer colocar um comentador da FOX News que apresenta como única credencial para o cargo ter estado na Guarda Nacional do Exército e ser veterano das guerras do Iraque e do Afeganistão. Pete Hegseth vai chefiar uma estrutura com três milhões de empregados e colaboradores, posto crucial no posicionamento de Defesa e Segurança Nacional dos EUA, porque tem feito na FOX News a apologia do trumpismo e um ataque à diversidade sexual e de género no exército americano. Tem traços de supremacia branca, foi um dos 12 em 25 mil que não passaram na verificação de segurança para poder proteger o Capitólio a 6 de janeiro de 2021, devido às suas publicações extremistas. Até queria que Donald Trump mandasse bombardear o Irão, “mesmo locais culturais”, depois da eliminação do general Qassem Soleimani, em janeiro de 2020.
As escolhas de Trump para postos chave não deixam espaço para benefício de dúvida. Trata-se de um cortejo de indignidades democráticas, ataque ao sistema institucional e alinhamento em teses obscuras sobre “acabar com a influência do deep state”. Até seria cómico se não fosse trágico.
Nos últimos dias, vários nomes inaceitáveis (e que deveriam ser inimagináveis para serem indicados pelo Presidente dos EUA para fazerem parte da Administração) foram lançados de rajada, numa tática que Trump domina bem há vários anos: quando ocorre uma sucessão de situações confusas e discutíveis, uma anula-se à outra e, no fim, nenhuma acaba por ter grandes consequências.
Bem-vindos, de volta, à era do caos trumpiano.
Kennedy desafia a força da evidência científica
Robert Kennedy Jr. é uma personagem, ao mesmo tempo, curiosa e perturbadora. É filho e sobrinho de duas das maiores lendas da história da política americana: Bobby Kennedy e John Kennedy. A herança do nome lançá-lo-ia na linhagem dos políticos democratas que teriam sempre alguma dimensão nacional.
Só que Robert Kennedy Jr. foi-se transformando num ícone de ideias entre o excêntrico, o negacionista e aquilo que, simplesmente, contra a evidência científica. Grande parte do clã Kennedy virou-lhe as costas por causa das teorias da conspiração que começou a espalhar durante a pandemia de Covid-19 sobre as vacinas, como a de que este vírus tinha como objetivo atacar caucasianos e negros e que as pessoas mais imunes são os chineses e os judeus asquenazes. Kennedy Jr. relacionou ainda os tiroteios em massa nas escolas com antidepressivos como o Prozac, denunciou que os democratas recebem muito mais dinheiro das empresas farmacêuticas do que os republicanos e está convencido de que as vacinas causam autismo.
Kennedy defendeu a regulamentação dos produtos químicos nos alimentos e a limitação do acesso a refrigerantes e alimentos processados através da merenda escolar e do Programa de Assistência Nutricional Suplementar e propôs uma ideia para trocar a gordura do sebo por óleos de sementes para tornar as batatas fritas do McDonald’s mais saudáveis.
Pretende que a segunda administração Trump remova o flúor do abastecimento de água do país. “A 20 de janeiro, a Casa Branca de Trump aconselhará todos os sistemas de água dos EUA para remover o flúor da água pública. O flúor é um resíduo industrial associado à artrite, fraturas ósseas, câncer ósseo, perda de QI, distúrbios do desenvolvimento neurológico e doenças da tiroide”, alega Kennedy, algo que vai totalmente contra a evidência científica. Não convém desvalorizar: a força da América é, também, a credibilidade da sua ciência, das suas universidades, do seu conhecimento. Premiar o negacionismo e pôr em causa a evidência científica terá consequências graves.
Igualmente preocupante: Kennedy pretende que o Departamento de Saúde, que vai liderar, fique “livre da captura corporativa e para limpar a corrupção”.
Em abril do ano passado apresentou-se como alternativa ao Presidente Joe Biden e anunciou as suas aspirações a ser o candidato do Partido Democrata, mas em outubro de 2023 anunciou que ia abandonar os democratas, para concorrer como independente, algo que acabou por suspender também, para apoiar Trump.
“Minoria Kennedy” pode ter dado a eleição a Trump
Esse apoio não deve ser negligenciado. Muitos falam numa “vitória esmagadora” de Trump nas urnas a 5 de novembro. Ora, isso não aconteceu. O triunfo de Donald enquadra-se nos resultados mais equilibrados das últimas décadas: ganhou o voto popular por menos de dois pontos percentuais e os estados decisivos por diferenças equivalentes.
Ora, Robert Kennedy Jr chegou a valer mais de cinco vezes essa diferença. Pela altura da desistência, valeria quase o dobro. Ou seja: a absorção da “terceira candidatura Kennedy” na plataforma Trump terá sido decisiva para a definição do vencedor. Adicionou ao estilo de votantes “MAGA” uma via com eleitores que acreditam que o Estado, a indústria alimentar e a “Big Pharma” os está a enganar. E apanha uma certa herança da pandemia de uns 5 a 10% que continuam a pôr em causa o que aconteceu na Covid-19.
A nomeação de Kennedy para Secretário da Saúde é a confirmação de que o crescimento das franjas negacionistas tem um valor eleitoral, esse sim inegável.
O primeiro teste: aprovações no Senado
Enquanto isso, Elon Musk – que não terá de ser aprovado no Senado por não ter sido indicado para um posto equivalente a ministro, mas para coliderar uma comissão de eficiência governativa – vai exibindo um ascendente quase inimaginável junto do Presidente eleito: participou no telefonema com o Presidente Zelensky, reuniu em Nova Iorque com o Embaixador do Irão na ONU. Já agora: a que título?
As nomeações de Tulsi Gabbard (ex-democrata, admiradora de Putin, amiga de Assad, suspeita de beneficiar de apoio russo) para mandar nas secretas e Matt Gaetz (crucial para a queda de Kevin McCarthy como speaker por ter feito acordo com os democratas, a contas com vários problemas na Justiça, para Procurador-Geral, equivalente a Ministro da Justiça) passam também todas as linhas vermelhas.
O primeiro grande teste dos “checks and balances” do sistema nesta era de poder político e judicial quase totalmente dominado pelos republicanos estará no processo de nomeação destas figuras. Tem Trump legitimidade eleitoral de fazer as suas escolhas? Certo. Mas o Senado terá a obrigação de verificar se todas essas escolhas têm mesmo condições de representar o Estado norte-americano ao mais alto nível.
John Thune, novo líder da futura maioria republicana no Senado, eleito com algum surpresa por nunca ter alinhado na “Big Lie” trumpista sobre o resultado de 2020 e por ser forte apoiante da ajuda à Ucrânia, já mostrou o que pensa sobre isso: “O Senado leva a sério seu papel de consentimento e aconselhamento, mas também não vamos permitir que os democratas obstruam ou bloqueiem o presidente Trump e a vontade do eleitorado americano”.