Beber para esquecer
É preciso um talento especial para insultar vários setores numa mesma frase. Esta semana, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, mostrou interessante potencial nesta modalidade atualmente em alta no Governo, quando relacionou o “elevado” número de acidentes na ferrovia portuguesa com o regime de contraordenações, alegadamente demasiado permissivo, para os maquinistas que conduzem comboios “sob o efeito do álcool”. Os maquinistas leram nisto, e bem, que o ministro da Presidência e o Governo consideram que o elevado número de acidentes com comboios se deve à enorme irresponsabilidade de quem os conduz, por fazerem-no “com os copos”.
A frase de Leitão Amaro insultou os maquinistas, claro, chamando-lhes indiretamente bêbados. O DN foi ler o último relatório do IMT - o Instituto da Mobilidade e Transportes e a questão do alcoolismo não consta do relatório do ano de 2023, supostamente o documento que faz o “estado da arte” da ferrovia.
É como se a ministra da Administração Interna falasse num aumento dos assaltos a bancos e o relatório sobre segurança interna pura e simplesmente não o referisse. Nem uma vez.
A frase de Leitão Amaro parece insultar a verdade dos números, ou pelo menos os técnicos que fazem os relatórios do IMT.
Mais, os maquinistas afinal são submetidos aleatoriamente a análises para ver se têm mais de 0,2 graus de álcool no sangue. São escrutinados. E o ministério de Leitão Amaro não revela qual o documento ou estudo em que se baseou para dizer o que disse.
Mas quando o tema é comboios - e, em Portugal, não se pode falar de comboios sem falar da CP - muito haveria para dizer.
Por exemplo, em que ponto está o polémico concurso de 870 milhões de euros lançado pelo anterior Governo para a compra de 117 automotoras? Aquele que foi ganho pela Alstom, o gigante dos comboios dono de uma empresa, a Nomad, em que um ex-presidente da CP tinha uma participação quando o concurso estava em preparação?
A frase de Leitão Amaro insulta uma oportunidade de baliza aberta dada ao Governo para explicar aos portugueses o que se passou em todo este processo.
O Estado português está a discriminar o transporte ferroviário (face ao rodoviário) permitindo que lhe apliquem tarifas altas - desde logo à saída dos portos -, mas subsidiando o gasóleo rodoviário, sobretudo o gasóleo gasto por um punhado de grandes empresas de distribuição que, à mínima hesitação neste ponto, ameaçam paralisar o país.
A frase de Leitão Amaro insulta, por omissão, as empresas do setor que há muito reclamam deste cenário e estão a fazer caminho noutros países.
Apesar de na UE não se poder vedar a entrada de novos players nos transportes ferroviários, a Infraestruturas de Portugal protege o quase monopólio da CP, uma empresa que há poucos anos, num Governo PS - e enquanto só se falava da TAP -, recebeu uma injeção 1,8 mil milhões de euros para “limpar” a sua dívida.
Portugal tem um problema com comboios, é óbvio que sim. Material antigo, linhas ferroviárias que andam para ser modernizadas há dezenas de anos, uma Alta Velocidade que avança com a rapidez de um novo aeroporto para Lisboa, uma CP pública incapaz, mesmo com um quase monopólio, de gerar receita suficiente para não depender do contribuinte. Problemas que não passam, claro, nem com uma valente bebedeira. E que deveriam estar a ser falados. A começar pelo ministro Leitão Amaro.
Diretor-Adjunto do Diário de Notícias