Assumir erros na América

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Os democratas poderão governar para sempre. Foi esta a conclusão do livro The Emerging Democratic Majority, publicado em 2002 por John B. Judis e Ruy Teixeira. As mudanças demográficas em curso nos EUA - mais jovens, mais profissionais urbanos, mais minorias e mais mulheres solteiras - expandiam a base eleitoral do Partido Democrata, convencendo os autores de vitórias fáceis no futuro. Entre outros, os triunfos de Obama em 2008 e 2012 validavam a tese.

Até que, em 2016, ganhou Trump. Depois, em 2020, perdeu por pouco. Assumir erros é coisa rara, sobretudo em profissões que adivinham os caminhos do futuro: videntes, cartomantes e analistas políticos.

Judis e Teixeira, porém, têm o mérito de contrariar a regra. Submeteram a sua tese a exame e publicaram Where Have All the Democrats Gone?, título de 2023 que, além de denotar humor penitente, indaga sobre o destino da maioria democrata em parte incerta.

A fundamentação é detalhada, mas a conclusão é simples: o Partido Democrata alienou - por vezes, com dolo - as classes média e trabalhadora, o núcleo do seu eleitorado desde o New Deal. Falamos de eleitores brancos, mas também de um número crescente de hispânicos, asiáticos e negros.

O livro identifica várias causas. Primeiro, o Partido Democrata aprovou acordos de comércio internacional que favorecem os sectores financeiro e tecnológico em detrimento da indústria, deslocalizada para outras latitudes. Segundo, desenhou políticas sociais escoradas na taxação da classe média. Terceiro, aceitou a imigração ilegal pouco qualificada, despachando qualquer receio popular como um sinal de reacionarismo patego.

Porventura mais importante, acolheu agendas identitárias, expressas com frequência em discursos e propostas radicais. Imigração, aborto, raça, género e orientação sexual são assuntos válidos com problemas tangíveis. Mas existe uma enorme diferença entre denunciar casos de violência policial e exigir o corte de financiamento à polícia, tida como uma reencarnação da Gestapo. Existe também uma grande diferença entre tornar o espaço público mais inclusivo e policiar a linguagem.

As agendas abraçadas pelas elites do Partido Democrata levaram-no a uma insularidade cultural que olha com desdém para as classes trabalhadora e média. A religião e o patriotismo, por exemplo, tendem a ser descritos como retrógrados e, com mais acinte, como ameaças a uma concepção estreita de progresso. Nos corredores do poder Democrata, os sindicatos perderam espaço para grupos de pressão LGBTQIA+ - sigla indecifrável para a maioria dos eleitores americanos.

As eleições de terça-feira sugerem que Judis e Teixeira fizeram bem em assumir erros. A vitória de Trump foi tão ostensiva que é injusto imputar todo o fracasso Democrata à fraca qualidade de Kamala Harris. A esquerda trocou a luta de classes pelos dogmas das guerras culturais, mas o eleitorado parece mostrar que as condições materiais do indivíduo são mais importantes do que a etnia ou a orientação sexual. Judis e Teixeira aprenderam. Resta saber se os democratas seguirão o exemplo.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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