As pessoas movem-se, as montanhas não
As pessoas, entenda-se os seres humanos, têm nos seus genes a apetência pela mobilidade. Assim, a prática do nomadismo foi dominante durante milhares de anos. O homem movia-se por comida e assim se cruzaram continentes e se deu a intersecção entre muitos povos do globo.
Só a revolução agrícola abrandou o ímpeto nómada, mas na realidade a mobilidade haveria de continuar até ao presente. Por isso, hoje não é diferente. As pessoas continuam a movimentar-se e mais do que nunca. Umas fazem-no por negócios ou lazer, outras, talvez as mais relevantes, deslocam-se por melhores condições de vida.
Ontem, em Santo António, no Texas, 46 dessas pessoas que aderiram à mobilidade em busca de uma vida mais digna morreram em condições sub-humanas. Mulheres, crianças, homens que tomaram a dura decisão de abandonar as suas terras e famílias sucumbiram por exaustão, desidratação e falta de nutrição.
A tragédia de ontem é apenas um triste marco na longa história dos migrantes nesta região. A proteção de fronteiras dos EUA reportou 557 mortes no espaço de um ano, numa contagem que terminou em setembro do ano passado. Trata-se de um número astronómico pois significa que mais 310 pessoas perderam a vida face ao ano transato.
Na Europa os números não são de todo melhores. Em 2021, mais de 3 mil pessoas morreram ou desapareceram no mar, entre as rotas clandestinas do Mediterrâneo Central e Oeste e no Noroeste de África. O propósito é o mesmo, as decisões de igual envergadura: pessoas que se movem para alcançar o Continente das promessas, dos ideais democráticos e de um modo de vida mais alinhado com os valores humanos.
Portugal sabe bem o que significa ter uma cultura de migração. Ao longo dos últimos 10 anos quase 1 milhão de portugueses migraram. Desde as gerações menos qualificadas, nas décadas de 60 e 70, às de hoje, entre as mais preparadas que o nosso país alguma vez testemunhou, a mobilidade está também nos genes da nossa gente.
Portugal, aquando a última presidência da União Europeia, fez jus ao seu estatuto de nação inclusiva para levar ao bloco regional a necessidade de acolher mais refugiados e migrantes. No presente, a Europa dá "casa" a aproximadamente 23 milhões de pessoas que são oriundas de fora do Continente.
Paralelamente, as equipas militares portuguesas (Polícia Marítima e Unidade de Controlo de Costa da GNR), nomeadamente ao serviço da Agência Frontex, conseguiram em cerca de 6 anos salvar mais de 14 mil migrantes.
Esta pequena reflexão visa apenas apelar à sensibilidade de todas e todos para os problemas relacionados com a mobilidade de seres humanos. Ignorar esta característica genética da nossa raça é um sinal claro de obscurantismo social e político, que, ainda que indiretamente, ajuda a condenar ao fracasso aqueles que não têm perspetivas de uma vida com o básico.