As incertezas de uma primavera islamista na Síria
O fim de uma autocracia torcionária leva sempre a entusiasmos compreensíveis. O problema na Síria é que o passado dos novos poderes instituídos refreia os ânimos. O envolvimento de Abu Mohamed al-Julani e do seu Tahrir al-Sham (HTS) em atos de violência islamista radical, assim como as lealdades prévias à al-Qaeda e ao ISIS, convocam temores e suscitam reservas.
Por ora, Julani diz e faz o desejado pelas capitais Ocidentais. Garantiu respeito pela diversidade étnica e religiosa do país, estabeleceu relações diplomáticas cordiais com as principais potências e diz-se empenhado num processo reformista de abertura política. Boa parte destas promessas têm sido consequentes.
Com razão, os cépticos alertam que as ideologias jihadistas não são incompatíveis com acções pragmáticas, sobretudo se desse pragmatismo depender a conquista de poder. Pelo contrário, os mais esperançosos vêem o HTS num caminho de moderação imposto pelo mosaico social e cultural da Síria. Julani saberá que as revoluções tendem a devorar os seus filhos, logo o melhor será abraçar o sossego exigido pelo peso da governação. As circunstâncias vergarão a ideologia.
Perante a dúvida, a dita Primavera Árabe oferece duas pistas interessantes. A primeira: não houve uma primavera. Foram várias, uma por cada país. A Tunísia, o berço da revolta, teve instituições capazes de garantir a continuidade administrativa do país, enquanto a vizinha Líbia, que nunca foi um Estado, desceu ao caos absoluto. Marrocos reformou a Constituição para, no essencial, manter tudo na mesma. Já a Argélia mostrou-se tímida, dissuadida pela memória de uma Guerra Civil sangrenta entre 1992 e 2002. Houve mimetismo no repertório dos protestos de rua, mas não houve uma trajectória política comum.
A segunda pista sugere que os partidos islamistas não comprometem a liberalização política. Note-se que os retrocessos autoritários na Tunísia e no Egipto chegaram pela mão de políticos seculares, não de islamistas. A Irmandade Muçulmana, no Egipto, e o Ennahda, na Tunísia, alcançaram o poder mediante eleições livres e, em grande medida, governaram de acordo com as normas e princípios do Estado de Direito democrático. Acresce o cuidado do Ennahda com os direitos das mulheres tunisinas, que gozam de uma liberdade única no contexto árabe. Num caso e no outro, foram as velhas elites seculares a recuperar práticas autoritárias, invertendo a abertura política que, a custo, avançava.
Dois casos não permitem inferir uma regra geral, é certo. Mas ao olhar para a Síria encontramos mais um exemplo de como o secularismo pouco ou nada garante na região. O partido Baath, uma mistura de socialismo, nacionalismo e pan-arabismo, nasceu de elites formadas na Europa, admiradoras do republicanismo francês e das reformas de Kemal Atatürk, na Turquia. Sobra recordar que o Baath foi o braço político da dinastia Assad, que perpetrou terrorismo de Estado dentro de fronteiras e patrocinou organizações terroristas no estrangeiro.
Talvez a Síria inaugure uma primavera adiada. Talvez regresse ao estado habitual de coisas, feito de golpes de Estado: desde a independência, em 1946, até à chegada de Hafez al-Assad ao poder, em 1970, a Síria teve 20 governos e 11 presidentes. Para futuro, a única certeza é que Damasco continuará a ser a mais antiga capital do mundo.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.