As deliciosas Memórias de Cirurgião

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Descobri a escrita bem-humorada de António Cirurgião há uns anos, no blogue Malomil criado pelo historiador António Araújo. E redescubro-a agora, num livro que acaba de ser editado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda. Para perceberem do que estou a falar, aqui fica um pequeno texto deste português, nascido em Chaves, que há seis décadas emigrou para a América :

 “Vivia eu nesse tempo em Lisboa. Já aparentava a idade de quem podia estar formado em Medicina, quando uma tarde me dirigi aos correios, em Campo de Ourique, para enviar um telegrama a minha mãe, por ocasião do aniversário dela.

Ditado o texto, a senhora do guiché perguntou-me pelo nome com que eu desejava assinar o telegrama.
- Cirurgião - respondi eu, para economizar dinheiro.

- Ó senhor doutor, com tantos cirurgiões existentes em Lisboa, como é que esta senhora vai saber de que cirurgião se trata? O nome, por favor.

- Ponha Cirurgião - repeti novamente.

- Não sabe que assim vai perder o seu dinheiro? O nome, por favor.

- Escreva Cirurgião - reiterei eu.

Enquanto a zelosa funcionária dos correios olhava boquiaberta para mim, a senhora do guiché ao lado, que acompanhava o diálogo, interveio e disse:
- Olha, filha: faz como ele manda. Ele é... (E fez um gesto para indicar que eu tinha um parafuso a menos.)

E de facto a solícita senhora que me estava a atender anuiu ao conselho da colega, fazendo como o Cirurgião mandava, não sem lamentar mais uma vez que eu ia desperdiçar o meu dinheiro, desnecessariamente.”

Não é só em Portugal que o apelido Cirurgião causa estranheza. Na América não é tanto o significado, mas o som e a própria grafia. Isto, conta o próprio, a ponto de, já contratado como professor por uma escola, ter ido tratar de mudar o visto de estudante para o de residente permanente, e uma funcionária dos serviços de imigração e naturalização em Boston sugerir, depois de esclarecida do significado, que mudasse para Surgeon.

“Porque é que não muda?”
“Porque eu gosto do meu apelido assim”, foi a resposta.

Imagino quantas vezes lhe devem ter voltado a sugerir o mesmo. E, claro, a resposta foi sempre a mesma, mais palavra, menos palavra.

Este livro não fala, obviamente, só do apelido Cirurgião. E sendo escrito por um português que vive na América, dá-nos muitas pistas sobre os Estados Unidos, mas também fala de países como o Brasil, Angola ou Marrocos, e ainda de Portugal.

Uma crónica é sobre Eusébio, outra fala de Amália, Camões e Pessoa. Aliás, várias falam de Amália, cuja ligação à América foi grande, como ainda há semanas lembrou aqui em artigo no DN o musicólogo Rui Vieira Nery. E entre os momentos passados com a fadista, o nosso autor conta, entre outros, o dia em que discutiram religião.

Cirurgião doutorou-se nos Estados Unidos, na Universidade de Wisconsin, em Madison, e entre 1969 e 1999, quando se jubilou, ensinou Português e Espanhol na Universidade de Connecticut. Penso não errar ao associar o autor deste Memórias Pessoais à Nova Inglaterra e tenho muita pena de não o ter conhecido quando, em 2017, andei pelo Massachusetts, Connecticut e Rhode Island a fazer reportagem sobre portugueses na América, luso-americanos e lusodescendentes, para um projeto do jornal e da FLAD que deu origem ao livro Pela América do Tio Silva.

Teria ficado muito bem ali junto com Tony Cabral, Leslie Ribeiro Vicente, Jim DeMello, Daniel da Ponte ou Manuel Pedroso, o popular sr. Pedroso, dono do Friends Marke, junto à Brown. Alguns deles foram-me apresentados por outro dos retratados no livro, Onésimo Almeida, grande académico, grande figura da comunidade luso-americana, também grande pena, basta pensar em livros como L(USA)lândia.

Ora, foi mesmo azar, pois o professor Onésimo (referência com todo o respeito de quem muitas vezes é o jornalista Leonídio) conhece bem Cirurgião, que agradece, no prefácio do livro, o desafio do amigo para publicar no Malomil “uns heterogéneos e levianos textos”. 

Não resisti a comentar com o professor emérito da Brown o meu agrado com estas Memórias do colega, e a meu pedido enviou o seguinte comentário sobre este novo título incluído na Coleção Comunidades Portuguesas da INCM: “A quem tiver saudades de saborear um delicioso português genuinamente vernáculo este livro oferece uma lauta mesa de iguarias. Hoje quase já não há quem escreva assim. Mas não é apenas a beleza da escrita que ressalta destas páginas. Elas estão cheias de histórias narradas com mestria, grande parte delas tendo como personagens grandes figuras da cultura e da política portuguesa do último meio século.”

Notável este Cirurgião, que diz que, tirando a família, o outro Cirurgião de nome que tem conhecimento surge referido numa biografia de D. João de Castro, vice-rei da Índia, um tal João Cirurgião, do século XVI. Notável pela forma como escreve, notável por ter tal orgulho no apelido que só se pode sentir feliz por ter assegurado a continuidade por terras americanas, como se pode perceber pela dedicatória aos netos, Camille Janine Cirurgião e Calvin Alexander Cirurgião.

Qual Surgeon, qual quê!


Diretor adjunto do Diário de Notícias

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