As canções de Putin
Vladimir Putin anunciou que vai voltar a lançar o Festival Intervisão da Canção, depois de, em 2022, a Rússia ter sido expulsa do Festival Eurovisão da Canção. De acordo com o Kremlin, já perto de 30 países estão interessados em participar.
A política, afinal, está bem enraizada nestes concursos.
Quando se organizou o primeiro Festival Eurovisão da Canção (1956), ele serviu para influenciar culturalmente os países da Europa Oriental, sendo um instrumento do Ocidente na Guerra Fria. Como resposta à Eurovisão, foi criada a rede televisiva Intervisão (1961), coincidindo com o Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria. As emissoras de televisão nacionais do Leste Europeu organizaram um concurso de canções como uma alternativa “socialista” ao festival eurovisivo. Tal como a Eurovisão, a Intervisão contribuiu para uma cultura popular europeia comum ao promover estrelas de sucesso em toda a Europa.
A Intervisão foi criada pelas estações de radiodifusão estatais controladas pelos partidos, na sua maioria comunistas, que eram membros da Organização Internacional de Rádio e Televisão (OIRT, 1946), a contraparte do Bloco Oriental da União Europeia de Radiodifusão (UER, 1950). Em 1968, quando o governo liderado pelo Partido Comunista da Checoslováquia acabou com a censura da comunicação social no contexto das reformas da Primavera de Praga, a Intervisão também incluiu entradas de membros da Eurovisão. Isso fez do Festival Intervisão da Canção desse ano o primeiro concurso pan-europeu de música televisionado, já que o da Eurovisão nunca fomentou entradas do Bloco de Leste durante a Guerra Fria. Após o aniquilamento da Primavera de Praga e a invasão soviética da Checoslováquia, em agosto de 1968, a Intervisão nunca mais foi produzida pela estação checa.
Recorde-se que foi um pianista polaco que abriu caminho à concretização de um festival da canção a Leste. Durante a Segunda Guerra Mundial, Wladyslaw Szpilman passou parte do período escondido no estaleiro, onde imaginou um festival de música, e só em 1964 se mudou para a estância balnear/termal polaca de Sopot, onde, num espetacular anfiteatro ao ar livre, criou a Ópera da Floresta, que foi casa anual do Festival de Música de Sopot (FMS).
A Intervisão ecoou o nome de seu precedente na Europa Ocidental, mas enfatizou o internacionalismo socialista em vez do projeto ocidental de integração europeia. No entanto, as duas organizações também cooperaram de diferentes modos. Um ponto de contacto entre eles foi a empresa de radiodifusão finlandesa, Yleisradio (YLE), a única empresa europeia a ter plena participação em ambas (OIRT e UER). As relações entre o Oriente e o Ocidente não se baseavam exclusivamente no confronto ou na mútua desconfiança, mas também na colaboração. Nessa interação os atores não-estatais tiveram um papel crucial. Apesar de as redes da Eurovisão e da Intervisão personificarem a divisão da Guerra Fria, as redes eram também associadas às esperanças de superar as divisões ideológicas na Europa.
Os festivais internacionais da Eurovisão e da Intervisão tornaram-se, portanto, montras coletivas da expressão cultural da juventude, que, nas origens, prometia derrubar fronteiras e mudar o mundo, bem como momentos de comunhão entre artistas e público, que ainda era maior porque se sabia que o objeto estava a ser monitorizado. Estes festivais televisionados, supostamente pacíficos, resultaram abertamente políticos nas suas intenções, porque poderiam facilmente ser vistos como respostas competitivas e um novo estágio na rivalidade entre os modelos da modernidade na organização social, vida cultural e estética.
A Eurovisão foi fundada como palco para a produção ostensiva da identidade nacional na chave do play out nacional, numa disputa em tempo de paz, intencionalmente calculada para suplantar os conflitos militares da primeira metade do século XX. Em contraste, na competição da Intervisão, a nacionalidade e a etnicidade expressavam-se de maneira marcadamente soviética, na chave da “amizade de nações”, excluindo qualquer expressão aberta de competição entre grupos étnicos ou nacionais, e orquestrado dentro da grande tenda ostensivamente “supernacional” da língua russa e cultura soviética comum. A competição ocorria no limite ocidental da União Soviética, olhando para a Europa. Contou com artistas de várias regiões e repúblicas, nações e etnias. A ligação entre identidade e desempenho foi atenuada. Os artistas estavam todos a competir na execução da “canção soviética contemporânea” (ou, numa tradução alternativa, “moderna canção soviética”).
Os concorrentes do concurso da Intervisão eram analisados perante um júri de especialistas, em vez do processo de votação nacionalmente articulado da Eurovisão, em que cada país lança os seus próprios votos para se encontrarem os vencedores da competição. A origem e a identidade nacionais formaram uma grande competição da Intervisão, ofuscada, porém, por formas culturais soviéticas dominantes comuns, como era geralmente o caso em eventos sociais e culturais.
Importa assinalar o aspeto benéfico para cada lugar anfitrião.
Na Intervisão não houve a diversidade de locais de acolhimento do evento como na Eurovisão. Em relação àquilo em que se tornou a competição entre os dois lados da Europa, no contexto eurovisivo, diferenças entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental são percetíveis por razões históricas óbvias. Portanto, embora a Eurovisão deva transmitir uma mensagem de paz e de união universal, existem fortes diferenças culturais.
É por estas razões que ambas as competições - a Eurovisão em curso e a Intervisão extinta - foram despertando, através da televisão, uma experiência comum, cujo confronto se vai intensificar com a coexistência anunciada.
Investigador universitário