As cadeiras de Van Gogh

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No passado mês de abril, no Museu do Palazzo Maffei, na cidade italiana de Verona, estava exposta uma peça intitulada A Cadeira de Van Gogh, da autoria do artista Nicola Bolla, homenageando o quadro que Van Gogh pintou em 1888. Ao ser observada por um casal de turistas, o homem aproximou-se da cadeira para que a mulher o fotografasse com o seu telemóvel; sentou-se, a cadeira cedeu e ficou amolgada - o casal saiu rapidamente da sala onde, naquele momento, não havia mais ninguém.

O museu deu conta desta ocorrência há poucos dias, acrescentando que, apesar de o acontecimento ter sido registado por várias câmaras de vigilância, o casal continua por identificar (o respetivo vídeo encontra-se no YouTube e também em sites de várias publicações, incluindo o jornal britânico The Guardian). Na sua comunicação, aquela instituição lembra que havia avisos para não tocar no objeto que é, de facto, muito frágil - trata-se de uma estrutura oca, unida com papel de alumínio e coberta com centenas de cristais Swarovski.

Entretanto, foi possível restaurar a obra de Nicola Bolla e voltar a expô-la no museu. Seja como for, há qualquer coisa de insano em tudo isto, qualquer coisa que nada consegue atenuar, nem mesmo quando temos a tentação de olhar para o aparato do homem a cair como uma imitação involuntária de uma cena burlesca de um filme mudo.

Van Gogh (1888) e Nicola Bolla (2025): isto não é o TikTok.
Van Gogh (1888) e Nicola Bolla (2025): isto não é o TikTok.

Claro que o museu, através da diretora Vanessa Carlon, não deixou de lembrar que havia avisos claros sobre a fragilidade da peça, sublinhando também o choque que é perceber que alguém foge de uma situação deste teor sem, pelo menos, comunicar aos funcionários aquilo que aconteceu. Ora, a meu ver, este é o tipo de detalhe social que valeria a pena escalpelizar a partir de uma perspetiva complementar, envolvendo dois dados muito concretos: primeiro, há um público que mantém uma relação banalmente instrumental com os objetos artísticos; segundo, o núcleo prático e simbólico do seu olhar sobre o mundo esgota-se na possibilidade de obter alguma imagem que “testemunhe” o vazio daquela relação.

Em boa verdade, observando com atenção os 27 segundos do vídeo divulgado pelo museu, percebemos que, no início, é já a mulher que simula estar sentada na cadeira para que o homem a fotografe. Dito de outro modo: a única motivação palpável para a presença dos dois naquele espaço é a obtenção de uma imagem ou imagens que possam “provar” a sua passagem.

No seu comunicado, o museu pede também aos visitantes que “respeitem a arte”. O pedido possui as louváveis virtudes da lógica e da sensatez, mas não pode, por si só, anular o que está em jogo. A saber: há um público contemporâneo, certamente constituído por diversas parcelas de públicos, que foi (des)educado para não ter qualquer respeito pela arte. E por uma razão muito simples: não conhece nem reconhece a especificidade da arte e do trabalho artístico - olha para o mundo à sua volta como se fosse um clip, televisivo e descartável, em que nada é realmente pertinente ou merecedor de alguma paragem para prestar atenção.

Há um público contemporâneo que não tem qualquer respeito pela arte: a sua arma de eleição é o telemóvel.

Para o casal não identificado, a cadeira não existe como objeto singular, mas apenas como veículo material para a obtenção de (mais) uma imagem. O que quer dizer também que as próprias imagens que produzem não envolvem qualquer valor, limitando-se a funcionar como bandeira pueril do turista que gosta de reduzir as suas viagens a uma mensagem mecânica: “Eu estive lá.” Onde? Tanto faz, mas “eu estive lá” porque a minha fotografia assim o comprova.

Infelizmente, a cultura mediática em que vivemos, povoada de redundantes “análises” políticas e futebolísticas, contribui todos os dias para que o domínio artístico se tenha esvaziado da dimensão sagrada que encarnou - e partilhou connosco - durante séculos. Agora, o homem a esmagar a cadeira de Van Gogh encontra-se multiplicado em dezenas (talvez centenas) de vídeos do TikTok. Não é preciso muita perversidade para imaginar que algum desses vídeos possa ter sido colocado em rede pelos próprios protagonistas - dizem os senhores deste mundo que é isso que faz uma rede “social”.

Jornalista

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