Apagão, defesa e a era da vulnerabilidade sistémica

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Vivemos na ilusão de sistemas resilientes. Infraestruturas densamente interligadas, serviços digitalizados, redes energéticas complexas, plataformas tecnológicas em tempo real — tudo nos transmite a imagem de um mundo funcional, interdependente e eficiente. Mas, como o recente apagão que atingiu partes significativas de Portugal e Espanha demonstrou, por detrás desta fachada tecnológica opera-se uma verdade inquietante: estamos cada vez mais vulneráveis de forma sistémica.

A vulnerabilidade sistémica não é a fragilidade pontual de um setor. É a interdependência estrutural entre áreas críticas — energia, comunicações, transportes, abastecimento, serviços de emergência — que transforma qualquer falha localizada num risco generalizado. Um simples desequilíbrio num sistema pode gerar um efeito dominó, com impactos que ultrapassam o controlo técnico e desafiam as fronteiras entre setores civis, militares e institucionais.

O que falhou no apagão não foi apenas a eletricidade. Falhou a capacidade de manter comunicação institucional, acesso à informação, resposta coordenada e continuidade de serviços essenciais. O silêncio das redes foi mais do que um vazio tecnológico — foi um vazio de comando, de previsibilidade e de confiança. E isso, numa democracia, é uma disfunção grave.

É neste contexto que se impõe uma reflexão estruturante sobre o conceito de segurança. Durante demasiado tempo, esta foi pensada de forma compartimentada: Segurança Externa ou Defesa Nacional, Segurança Interna, Proteção Civil, Informações, Emergência Civil e Cibersegurança. Cada uma com a sua doutrina, os seus recursos e o seu próprio quadro de decisão. Mas num mundo onde os riscos são simultaneamente tecnológicos, naturais e geopolíticos, esta fragmentação já não serve. A vulnerabilidade é sistémica e por isso, a resposta tem de ser integrada.

Mas esta reflexão, não deve ocorrer apenas dentro dos perímetros clássicos da segurança externa ou interna, da proteção civil ou da emergência civil, entre outros. Deve estender-se também a políticas públicas setoriais, que até aqui foram tratadas como domínios técnicos ou económicos, mas que, no contexto atual, têm implicações estratégicas diretas na segurança coletiva.

A política energética é disso um exemplo paradigmático: aquilo que outrora se considerava matéria de regulação de mercado ou de transição ambiental é hoje, claramente, uma questão de soberania e segurança nacional. A solidez e autonomia do sistema energético são inseparáveis da capacidade do Estado garantir estabilidade, continuidade de serviços e proteção das suas populações.

E essa resposta passa, desde logo, por reconhecer um princípio estratégico fundamental: as decisões sobre energia são decisões de segurança nacional. A política energética - desde as opções de produção até à arquitetura da rede e à relação com fornecedores externos - não é apenas uma questão técnica ou ambiental. É um instrumento de soberania, de resiliência e de estabilidade do Estado.

O paradigma da resiliência - embora necessário - já não é suficiente. Precisamos de anti-fragilidade, no sentido de Nassim Taleb: sistemas que, perante a crise, não apenas resistem, aprendem, respondem ativamente, adaptam e reforçam. Isso implica redes com redundância tecnológica, protocolos de continuidade operacional, canais alternativos de comunicação e uma doutrina nacional de gestão de crises assente numa abordagem integrada de segurança.

A arquitetura de segurança nacional deve, por isso, ser repensada - não apenas do ponto de vista institucional, mas também cultural e político. Exige-se uma integração funcional e doutrinária entre domínios operacionais; entre infraestruturas críticas e capacidade digital; entre meios civis e militares; entre autoridade política, comando operacional e execução técnica.

Neste novo enquadramento, o papel das Forças Armadas deve ser estrategicamente revalorizado. Em Espanha, foram mobilizadas para garantir a continuidade operacional de setores civis essenciais. Em Portugal, tal não sucedeu - não por falta de capacidade, mas pela inexistência de um modelo político-operacional que legitime e articule essa atuação em contextos de crise sistémica. As Forças Armadas dispõem de recursos técnicos, estruturas de comando e capacidade logística que podem - e devem - ser mobilizados quando a estabilidade do país está em causa.

É tempo, por isso, de estruturar uma interoperabilidade efetiva entre Defesa e Proteção Civil. Isso implica treino conjunto, sistemas partilhados, canais de decisão coordenados e, sobretudo, aquilo que tantas vezes se adia: uma cadeia de comando conjunta, capaz de atuar com eficácia, legitimidade e celeridade em cenários de crise nacional.

Este debate torna-se ainda mais urgente num momento em que a Europa discute o reforço do investimento em Defesa. Portugal permanece ancorado num paradigma de relativa estabilidade, herança da sua geografia e da ordem internacional do pós-Guerra Fria. Contudo, esse paradigma já não corresponde à realidade estratégica. O investimento em Defesa não pode continuar a ser justificado apenas por compromissos externos. Deve resultar de uma decisão soberana, ancorada numa leitura lúcida dos riscos presentes e das responsabilidades do Estado.

A meta dos 2% do PIB deve ser encarada como ponto de partida, não como ponto de chegada. O verdadeiro debate é político e estratégico: Qual o nível de ambição nacional? Que Forças Armadas queremos? Com que missão, capacidades e grau de integração no esforço coletivo europeu e atlântico?

Num momento em que os Estados Unidos adotam uma postura mais seletiva, e em que o conflito na Ucrânia se aproxima de um ponto de transição indesejável, torna-se previsível a emergência de uma “paz possível” - ainda que essa paz não seja legítima nem estável. A Europa tem de preparar-se para um mundo onde os equilíbrios se fazem por influência e pressão, não por consenso ou legalidade. E Portugal deve fazê-lo com clareza, ambição e responsabilidade.

Preparar-se começa por dentro: dotar o Estado dos meios, da doutrina e da coordenação necessários para enfrentar situações-limite, quaisquer que sejam as suas origens. Isso exige liderança política, investimento inteligente e, sobretudo, uma cultura de antecipação estratégica.

Este apagão não foi apenas um contratempo. Foi um sinal. Uma oportunidade de aprendizagem. Proteger o país começa por garantir que Portugal nunca fica às escuras - nem em silêncio.

Especialista em Segurança e Defesa

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