Antes que seja demasiado tarde
Há duas maneiras de abordar a reforma da justiça. Uma é partir das representações e interesses dos operadores; outra, focar o elo que necessariamente mantém com a democracia e os direitos humanos. Esta é a maneira mais útil, que é nesse elo que os problemas são graves. Sobretudo nas áreas administrativa, fiscal e penal, em que mais intensamente se colocam o equilíbrio entre os diferentes poderes do Estado e a relação entre este e cada pessoa. Após décadas de acumulação de factos anómalos, chegámos a um ponto em que pode estar em causa o Estado democrático de direito.
Os factos que invocarei, da forma mais objetiva possível, não descrevem o dia a dia da justiça, administrada por gente séria e competente. Mas são de tal monta e tocam tão criticamente direitos e liberdades fundamentais que contaminam o todo – e, se não agirmos, acabarão por destruir a confiança pública na justiça.
Falo dos seguintes factos. O elevado custo do acesso, que nega a igualdade perante a lei. A morosidade, fazendo com que, por exemplo, haja particulares esperando 15 ou 20 anos pela resolução de litígios administrativos ou fiscais. O abuso das figuras da detenção e da prisão preventiva: trate-se de um autarca ou do líder de uma claque de futebol, não é aceitável que o detido seja presente a juiz no limite do prazo constitucional e apenas para identificação sumária, ou esteja preso preventivamente meses a fio, quando não anos, sem sequer ser acusado. O abuso das escutas e buscas, que uma reiterada prática de magistrados judiciais e do Ministério Público (MP) tem banalizado: e, sim, ter uma pessoa quatro anos seguidos sob escuta ou devassar a sede de um partido é mais da ordem da vigilância política que da justiça. A leitura enviesada da lei, como a alegação de que os prazos a cumprir são meros “ordenadores”, ou que o princípio do juiz natural pode ser contornado em certos casos. A impunidade de ilicitudes flagrantes, como a violação do segredo de justiça ou da proibição da publicação de comunicações pessoais intercetadas, sem consentimento dos visados. O formalismo jurídico, que cultiva uma linguagem cifrada e leva a mil e um procedimentos circulares e a inúmeros conflitos entre os magistrados intervenientes, o que não raro é a razão principal dos atrasos e riscos de prescrição. O arrastamento dos processos penais, deixando consolidar, na opinião pública e no círculo privado e profissional dos atingidos, a convicção de culpabilidade e a decorrente condenação pública extrajudicial – e, ademais, criando uma pressão inadmissível da vox populi sobre os tribunais.
Porque é que isto acontece? Não é só pela falta de meios: eles têm aumentado, sem que tenha melhorado a eficiência; no que toca a magistrados e investigadores, Portugal compara bem com os países pertinentes; e, sendo escassos, os recursos não podem ser delapidados em operações para televisão ver, antes criteriosamente aplicados. Muito menos é por “pressão política” sobre a justiça: a verdade é que, neste momento, a pressão funciona ao contrário; além do mais, a independência dos tribunais é total, e o MP até transformou a autonomia em independência de facto, estendendo-a a cada procurador ou equipa de procuradores. Então porque é?
A meu ver, por cinco razões cumulativas.
Primeiro, erros clamorosos do poder político. Seja do legislador, com falta de clareza e coerência de leis-chave, seja do executivo, com decisões que se revelaram desastrosas (entre as quais a escolha da atual Procuradora-Geral da República, proposta por um governo de que fiz parte, assumindo, portanto, a respetiva quota de responsabilidade).
Segundo, falhas de organização. Especialmente evidentes no caso do MP, cuja natureza hierárquica foi sabotada e que funciona como um reino feudal, em que a rainha até abdicou dos poucos poderes que lhe sobravam. Organização não quer dizer, porém, apenas autoridade, mas também coordenação e avaliação. Claro que nenhum magistrado pode ser criticado porque o inquérito que dirigiu deu em nada, ou o tribunal absolveu quem ele acusou, ou a Relação ou o Supremo reverteram a condenação que proferiu. Mas, como qualquer outra organização que se preze, o MP há muito deveria ter tomado as medidas que entendesse necessárias para reduzir a elevada taxa geral de insucesso que apresenta (como, no que toca aos tribunais, os respetivos conselhos superiores já procuraram fazer).
Terceiro, a recusa feroz de prestar contas. Como se, em democracia, houvesse algum poder que estivesse imune ao escrutínio público, não tivesse de dar explicações, pudesse viver virado para si próprio e encarar qualquer crítica como um “ataque”. O corporativismo, tão instalado no nosso mundo judicial, é aqui o principal responsável. Com uma perversão adicional, que é serem as forças sindicais a falar em nome das instituições, como se as dirigissem.
Quarto, o preconceito antipolítico e antieconómico. Produto, como todo o preconceito, de um misto de desconhecimento, ignorância e pretensa superioridade moral. Quando olhamos para vários processos-crime abertos pelo MP contra dirigentes políticos ou empresariais, já concluídos, que não resultaram em nenhuma condenação penal, mas arruinaram carreiras e reputações, quando não vidas, o padrão é sempre o mesmo: a suspeita face ao “poderoso” porque todo o “poderoso” é potencialmente corrupto; e a confusão, não sei se intencional se apenas incompetente (qual delas a pior…), entre a apreciação política, a regularidade administrativa e a relevância criminal.
Finalmente, a húbris. Se pode abrir-se um processo a partir de qualquer denúncia anónima, ou simples “notícia” de jornal; se não há prazos imperativos; se as escutas irrelevantes para um processo podem ser mantidas, e de tal maneira guardadas que acabam publicadas mais cedo do que tarde na imprensa “amiga”; se os média acolhem e divulgam acefalamente transcrições e “resumos” devidamente truncados e descontextualizados; se até o Presidente pode ser escutado (“fortuitamente”) sem autorização prévia do Supremo; se basta um comunicado para derrubar governos; se o ambiente populista é tão favorável ao magistrado-vingador; e se é fácil ocorrer uma consonância quase perfeita entre o calendário político, o interesse mediático e o curso das diligências – então, a húbris, essa vertigem desmedida do poder, é imparável.
Estamos como no Estado Novo? Não; basta a publicação deste artigo, num jornal não censurado, para prová-lo. Mas a democracia não cai hoje, na Europa, por golpe exógeno; é corroída por dentro, e também o é pela indiferença ou inação perante os abusos de poder e as ameaças à liberdade. Se não fizermos nada agora – se não fizermos todos, cada num no seu plano e com a máxima concertação possível de ideias e interesses – o Estado de direito pode vir a correr perigo.
Professor da Faculdade de Economia do Porto, membro da Comissão Política do Partido Socialista, copromotor do “Manifesto dos 50”. As opiniões expressas só responsabilizam o autor.