Alojamento Local. Pior era impossível
Como é que se garante que existe Alojamento Local (AL) numa cidade sem prejudicar a vida dos residentes? Com regras e bom senso. É o que estão a fazer as capitais europeias, e não só, onde o turismo explodiu nos últimos anos. Era o que estava a fazer Lisboa, até agora.
O Governo de Luís Montenegro veio alterar a lei do AL com uma urgência incompreensível e sem qualquer debate ou reflexão sobre o tema. A mexida na lei não se limita a deitar por terra o trabalho iniciado em 2018, quando a Assembleia da República (por iniciativa do PS e, em particular, do PS na CML) deu às câmaras municipais o poder de proibir AL. Pior do que implodir o que já existe, é legislar em sentido contrário. Estão a ver o carro que segue numa autoestrada em contramão? É nesse carro que estamos agora.
Só nas alterações feitas ao Programa do Governo PS Mais Habitação, já foi revogada a contribuição extraordinária sobre o AL e anulada a atribuição de um coeficiente de vetustez fixo a imóveis afetos a esta atividade (aumentando o IMI, o que pode ter levado ao elevado número de cancelamentos em 2023, 1.024). Acabaram também a caducidade das licenças (que era de cinco anos, embora renovável) e a sua intransmissibilidade (passam agora a poder ser transacionadas e transmitidas a terceiros). A autêntica terraplanagem das medidas criadas para proteger a habitação, em detrimento da exploração turística, não tem, no entanto, comparação com o que aí vem para os condóminos.
A partir desta sexta-feira, os condomínios vão ver-se gregos para evitar ou cancelar um AL no seu prédio. Há barulho a perturbar o descanso ou o sono dos residentes por causa de quem está a gozar férias e não tem de acordar cedo para ir trabalhar? Há mais lixo nos espaços comuns ou sensação de insegurança porque a porta está aberta para dar passagem a desconhecidos? Estas “incomodidades” vão passar a ter de ser provadas, ainda não se sabe bem como, nem com que critérios, mas já se adivinha o pesadelo burocrático que dificilmente será isento de arbitrariedades. Na prática, uma maioria de condóminos contra o AL já não vale nada. É o próprio legislador que antecipa problemas ao criar a figura do Provedor do Alojamento Local (note-se que não é um Provedor dos Moradores…) para fazer a mediação de conflitos.
E como se não bastasse ser agora mais difícil aos condóminos pedirem o cancelamento de um AL e impossível oporem-se a novas licenças (como é que se prova incomodidade antes dela existir?), a nova lei ainda amplia o rol de possibilidades dos donos destes alojamentos: vai ser possível complementar as dormidas com “estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, incluindo os de restauração e de bebidas”. Portanto, dentro do Airbnb do 3º Esq., vai poder haver também um bar e um bistrô. Quem diria que em vez do capitalismo selvagem teríamos o liberalismo faminto?
Se o AL, por si só, era um fator de sobreaquecimento do mercado da habitação (ao retirar casas do arrendamento tradicional está a diminuir a oferta e a aumentar os preços), imagine-se a perversidade de uma atividade económica que passa a poder ser realizada contra a vontade de quem vive ao lado, por baixo ou de quem partilha espaços comuns num prédio residencial…
O Governo está a desproteger as famílias portuguesas e a nova lei não se limita a tirar casas a quem delas precisa. Ainda traz o bónus de poder vir a infernizar a vida de quem está sossegado no seu canto. Melhor para quem investe nesta atividade, só se a lei tivesse sido feita pela própria Associação dos Proprietários de Alojamento Local…
Em Lisboa, onde em 20 das 24 freguesias cai a suspensão de novas licenças para AL, os investidores vão finalmente poder banquetear-se. No metro quadrado mais valioso do país, onde poucas famílias de classe média ou jovens conseguem comprar ou arrendar, vai voltar a haver (mais) casas para turistas. Por causa disto, o PS fez entrar na CML duas propostas urgentes a pedir a suspensão imediata de novas licenças até que o regulamento municipal seja adaptado à nova realidade. Propõe-se ainda que este regulamento passe a prever a suspensão automática nas freguesias onde o rácio entre AL e fogos para habitação permanente seja igual ou superior a 2,5%, devendo a cidade inteira ficar limitada a um teto máximo de 5%.
Não se trata de impedir AL, apenas de evitar que ele seja feito de forma selvagem, descontrolada ou sem qualquer fiscalização. Algo que os proprietários de AL também deviam querer, para evitar concorrência desleal e apostar na qualificação da oferta turística.
À hora a que escrevo, Carlos Moedas – que votou sempre contra qualquer limite ao AL (que considerava atentatório da “liberdade de empreender”), que chegou a fazer campanha ao lado dos proprietários e escolheu sempre o turismo em vez do direito à habitação dos munícipes – correu a apresentar uma proposta semelhante à do PS. Apesar da contradição óbvia com tudo o que sempre fez e disse, saudamos que se tenha juntado ao lado bom da força, e desejamos que aqui se mantenha – convictamente, e não por cálculo político. Porque Lisboa, que já tem um número de AL superior a Barcelona ou Veneza, não merece o destino que o Governo PSD/CDS lhe está a traçar. Pior, era mesmo impossível