Alô, PSP? Daqui democracia
Uma polícia integral, humana, forte, coesa e ao serviço do cidadão". É com esta frase-padrão que terminam os mails enviados pelo departamento de Relações Públicas da PSP à Arquipélago Filmes - mails nos quais exige alterações a um guião como condição para lhe ceder fardas.
É isso mesmo, leu bem; exige, do verbo exigir: "Não haverá problema em autorizar o aluguer das fardas desde que haja concordância da vossa parte em proceder às alterações propostas." E que alterações são estas? Que a personagem de um agente da PSP não coma uma sandes no local onde foi descoberto um corpo; que outro agente não diga a uma juíza "tá a ver" porque "pode ser considerado desrespeitoso"; que seja alterada a cena em que o agente explica à juíza como identificou um arguido, "porquanto demonstra que o mesmo foi descuidado e não identifica cabalmente o réu." A alteração proposta inclui até uma frase da autoria da PSP, que assim se estreia (isto se for a primeira vez, sabe-se lá) na redação de guiões.
Não, não é um sketch cómico - se bem que seja, na verdade, um sketch, e bem cómico. Só que simultaneamente assustador. Porque, sim, temos mesmo uma polícia de um Estado democrático europeu, neste ano da graça de 2021, a achar que pode ditar condições a uma obra de ficção para "ceder fardas" - fardas que, talvez convenha sublinhar, são do Estado português e não propriedade privada da direção da PSP.
Uma polícia que parece obcecada com a sua imagem - mas apenas, dir-se-á, quando está em causa a liberdade de expressão de criadores. De ficção televisiva, como é este caso, ou de cartoons - recorde-se que em 2020 a PSP anunciou que iria apresentar queixa-crime em relação a uma ilustração do suplemento satírico Inimigo Público. Motivo? O facto de esta, representando um grupo empunhando tochas (em referência à ação tipo Ku Klux Klan levada a cabo por um grupo de mascarados junto à sede do SOS Racismo no verão passado), incluir um elemento com uma farda da PSP. "A PSP lamenta a leviandade com que o jornal e o cartoon em questão feriram a boa imagem da instituição e dos polícias que nela servem e protegem os nossos concidadãos", lia-se numa publicação no FB da corporação.
De facto, é muito mau ver uma farda da PSP associada a uma ação racista. É bom que quem dirige esta polícia se preocupe com isso, mas convém que essa preocupação se dirija para a realidade e não para a sua representação em cartoons: deverão ser as efetivas manifestações de racismo no seu seio a mobilizar os esforços no sentido de preservar a imagem da corporação. Só que não: os agentes condenados no caso da esquadra de Alfragide por sequestrarem, agredirem e insultarem jovens negros continuam ao serviço e um deles voltou até a insultar e caluniar as vítimas num post de Facebook, sem que a PSP tenha tomado qualquer posição pública em relação a esses insultos e calúnias, quanto mais anunciar que vai mover um processo ao agente por prejudicar a imagem da corporação.
Do mesmo modo, é muito importante que a atual direção da PSP zele para que a sua imagem evidencie respeito pelos cidadãos e instituições. Mas não a costumamos ver a censurar situações, reveladas em vídeos sucessivos, nas quais agentes tratam cidadãos por tu, os agridem de forma gratuita e usam até palavrões cabeludos, demonstrando não ter a menor ideia do que é ser "uma polícia integral, humana, forte, coesa e ao serviço do cidadão. É um "tá a ver" numa série de ficção que a incomoda a ponto de achar que pode erigir-se em instância de censura prévia.
Não, a direção da PSP, definitivamente, não "tá a ver" o que significa ser polícia numa democracia. Felizmente temos quem mande nela - é para isso que serve o Ministério da Administração Interna, não é? Para assegurar a ordem democrática e orientar a atuação das polícias. Se calhar está na altura de explicar isso ao diretor Magina da Silva. Ou mesmo ao ministro Eduardo Cabrita.