Ainda sobre Camões: contra o muito prà frentex
Importa vincar, em 2025, a importância de se leccionar com propriedade a poesia de Camões, seja a lírica, seja a épica. Seria bom não menoscabar o teatro e lembrar, relendo-as e relacionando-as com certos aspectos misteriosos da sua vida, as quatro cartas que dele nos chegaram. Fiama Hasse Pais Brandão e o artigo sobre as cartas que podemos ler em O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos (temas de literatura e de história portuguesas), eis uma excelente porta de entrada para, em 25, reler Camões de modo novo. E lê-lo de modo novo é, desde logo, reconhecer que não há um, mas vários Camões: O Camões Épico, o Camões Lírico, o Camões Dramaturgo e o Camões Epistolar. É no jogo de máscaras deste Camões plural que os estudantes de agora poderão ter gosto e saber em ler a poesia do nosso maior Quinhentista.
Declarar que Camões não é um, mas vários, como inteligentemente propôs Hélder Macedo, isso mesmo pode convocar outros poetas - de Pessoa aos contemporâneos que mais directamente dialogaram com Luís Vaz (penso em Jorge de Sena, Sophia, Manuel Alegre, Gastão Cruz, certo Herberto, o Ruy Belo que leu em torrenciais versos Pedro e Inês e, claro, Vasco Graça Moura, ou David Mourão-Ferreira). Um Camões plural, pois claro. E total. Esse “total”, em todo o caso, não pode ser sinónimo de tudo se admitir, de tudo se avançar como hipótese hermenêutica, de tudo ser válido a pretexto de honrarmos a memória do grande vate. É nos poemas, nos textos e no que é a sua gramática (ideias e frase) que redescobrir Camões poderá ser instigante para os estudantes, hoje tão alheios a métodos de análise que, outrora, nos ajudaram a compreender. Método significa “caminho” e é necessário, em 2025, cultivar certa vigilância em face de muitas abstrusas correntes de interpretação que por aí vão ganhando lugar. Não constitui caminho o que, passando por ser proposta muito para a frentex acaba por desvirtuar a linguagem de Camões. Combater mesmo as tresleituras e os modismos vindos de áreas aparentemente muito revolucionárias, esse é um imperativo didáctico e pedagógico. Desconfiar sempre dos que defendem como o graal interpretativo que faltava um Camões que queremos que esteja de acordo com a nossa forma mentis actual.
Hoje, mercê do regresso de novas formas de impressionismo, em grande parte motivado por novas “superstições literárias” (Charles Du Bos deve ser recuperado do olvido), é essencial contrapor às mistificações e equívocos dos Estudos de Género, dos Estudos Culturais e de outros ‘estudos’ muito modernaços, o prazer do texto. É certo que as questões contextuais, histórico-culturais e de natureza filosófica e estética, são axiais para o estudo rigoroso da poesia e, particularmente, da poesia de Camões. E igualmente podem ser de enorme contributo as biografias que em 24 se publicaram. Nunca, todavia, pode ser o biografismo a determinar a leitura de um texto literário. Como lembrava David Mourão-Ferreira: “A biografia ajuda, mas não explica.” No que tange à sua lírica e seu ensino, é de sublinhar que as práticas de lecionação exigem o conhecimento de determinados ensaios, trabalhos de investigação e de certos problemas da linguagem poética do maneirismo sem os quais ler Camões será sempre tarefa incompleta. Um dos conceitos fundamentais é o de “comunidade interliterária”; conceito operatório que coloca um poema de Camões (ou de qualquer outro autor) no espectro do transtemporal e do transdisciplinar.
Explorar as relações entre Camões e a antiguidade; entre Camões e a tradição do medievo (a escolástica, o platonismo de Plotino, não só o de Platão e o aristotelismo), investigar a tradição do soneto, sua lógica e mecânica (um livrinho de Paul Oppenheimer é angular: The Birth of The Modern Mind - self consciousness and the invention of the sonnet, Oxford, 1989) exigirá que se compreenda a verdade da ficção que lemos em certos versos capitais das Rythmas (1595). A consideração da poesia segundo o conceito horaciano da Ut Pictura Poesis; a idealização da Bárbara das endechas como “doce figura” que é, primacialmente, figura da escrita (num poema-pintura que se inicia pelo díctico “Aquela” (início do desenho) e acaba com o díctico “Esta” (uma vez que o poema está a terminar)); o verbo “fingir” que já aparece em Camões com o sentido que modernamente lhe dará Pessoa (fingir como ficção), articular Camões com os discursos das outras artes e, especialmente, no diálogo com a arte maneirista portuguesa (explorar o sema-símbolo do “fogo” (amor-paixão-erro-cegueira) à luz do temário das ruínas e do fogo que lemos num Diogo de Pereira), são estas algumas hipóteses de sentido para um Camões que interesse a quem ensina e a quem aprende.
Um dado mais: nas aulas é urgente recuperar certas práticas antigas de ensino e que a parafernália tecnológica e as pedagogias da autonomia (autonomia dos alunos com base no que jamais leram e feita de que práticas de escrita e de conhecimento de bibliografia activa e passiva?) e do “aprender a aprender” erradamente puseram de parte. Nada substitui a leitura em voz alta, num tom equilibrado e atento ao ritmo dos versos, pausas, tons, intensidades, dessa Canção X que poderia ser relacionada, porventura, com a canção X de um Gastão Cruz, o de Outro Nome (1965). Assim na formação de professores houvesse capacitação textual e não tanto a famigerada “capacitação digital” e também seria vivificante pensar Camões através da música do seu tempo. O livrinho do mestre Freitas Branco, faria sentido dá-lo a ler a estudantes e professores? E esse ensaio de Jacinto do Prado Coelho, Temas e Motivos da Lírica Camoniana (1955), não será mais importante que qualquer teoria sobre a sexualidade de Camões, ou sobre quem foram as amadas do poeta?
Regressar aos textos, sim. À sua gramática. Explorar a retórica prodigiosa desse fazedor de oxímoros e de paradoxos, essas “figuras do deslizamento” que espelham bem o desconcertado mundo a que só a poesia pode dar concerto. Perceber bem por que razão a frase subordinada consecutiva é determinante em muitas das chave-de-ouro de inúmeros sonetos… Ou seja: recusar as modas e as tresleituras, as novas superstições literárias, creio que só assim os alunos de 2025 poderão fruir com o rigor de uma imaginação culta as imagens, as cenas vivas de uma obra imorredoura.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico