Afinal somos todos populistas penais?

Não é preciso um processo de milhares de páginas, dezenas de arguidos, factos de grande complexidade e muito ódio à solta. Basta um caso de morte sob custódia policial como o de ​​​​​​​Ihor para demonstrar a dificuldade que muita gente tem com as regras básicas do processo penal.
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A ideia do populismo penal tem sido muito associada, e com motivo, à extrema-direita. A ideia de que aumentar as penas resolve os crimes; de que quanto mais gente e quanto mais tempo na prisão melhor; da recuperação dos castigos corporais, da mutilação e da pena de morte; da "transmissão" das penas à família dos condenados; que a polícia deve poder usar violência, inclusive mortal, a seu bel-prazer - tudo isto vemos em ideários de partidos de extrema-direita como é o caso daquele que em Portugal é dirigido por alguém que, ironicamente, fez toda uma tese de doutoramento, há escassos sete anos, contra o populismo penal.

Não surpreende pois ver a extrema-direita a exigir condenações a torto e a direito - desde que, bem entendido, para determinados crimes, aqueles que fazem parte do seu oportunista cardápio de "causas". Não a veremos clamar por penas elevadas por exemplo para polícias acusados de matar. Não; nesse caso ou se cala ou defende o acusado.

Infelizmente, porém, há quem não sendo extrema-direita se confunda com ela na negação da presunção de inocência e de processo justo - no populismo penal, portanto.

É o que se tem visto no caso dos três inspetores do SEF acusados do homicídio qualificado de Ihor Homeniuk e cuja acusação foi agora alterada pelo MP, nas alegações finais, para ofensas à integridade física graves qualificadas e agravadas pelo resultado (a morte). Desde que na quarta-feira passada o coletivo de juízes advertiu as partes de que poderia alterar a qualificação jurídica dos factos e ponderar a existência desse crime - com moldura penal de quatro a 16 anos - em vez daquele pelo qual os arguidos iam acusados que vejo gente, no Twitter, indignada, a dizer que "é o total descrédito da justiça" e a teimar que há provas cabais de homicídio - porque Ihor morreu.

Ihor morreu - e a sua morte é, como tantas vezes repeti, vergonha nacional e óbvia responsabilidade do SEF e do Estado português. Isso ficou bem claro, se não o fosse já, no julgamento: assistimos a um desfile de desresponsabilização, incompetência, desumanidade e até admissão de crimes por parte de funcionários do SEF, de seguranças da empresa privada contratada pelo SEF, até de técnicos de saúde, que deveria ter consequências para além deste processo criminal, nomeadamente no exarar de regras claras sobre algemamento e desalgemamento, sobre o que deve acontecer quando ocorre uma morte em custódia e sobre quais as responsabilidades das cadeias hierárquicas nas polícias - o que vimos foi gente a descartar-se delas, como se aquilo fosse uma espécie de associação de amigalhaços e ninguém mandasse em ninguém.

O que não vimos - não vi - foi prova que permitisse condenar os arguidos por homicídio, ou seja, que evidenciasse que ou quiseram matar ou se conformaram com o resultado morte em consequência das suas ações. Independentemente das convicções que se tenham formado sobre o que estes três homens fizeram e não fizeram e o que pensaram ou não pensaram - e tenho as minhas -, para os condenar num processo justo tem de haver provas.

Não há provas porquê, perguntaram-me no Twitter. Sempre achei a acusação mal feita - disse-o aqui - e a investigação com falhas. Não compreendo por exemplo que, alertada logo a 14 de março, dois dias depois dos factos, para "uma morte com possível etiologia homicida" pelo médico que fez a autópsia e na mesma altura, através de denúncia anónima, informada sobre o nome de dois dos agora acusados, a PJ não tenha iniciado a investigação pelo exame da divisão onde ocorreu o óbito (exame que nunca ocorreu, de resto) e assim que possível apreendido os bastões que dois dos inspetores tinham consigo quando estiveram com Ihor, assim como o vestuário e calçado dos três naquele dia. Do mesmo modo, estranho que não tenha ocorrido aos investigadores recolher depoimentos de eventuais testemunhas entre as pessoas detidas no centro de detenção do SEF onde Ihor morreu. Mas sendo a investigação o que foi, e tendo em conta a prova feita nas audiências (que também podiam, na minha modesta opinião, ter sido mais bem dirigidas), a posição do coletivo de juízes e do MP parece-me a mais adequada - e suscetível até de conduzir a uma condenação, que creio prefigurar-se com esta alteração.

No entanto há pessoas - não raro as mesmas que perante a decisão de Ivo Rosa aceitam a possibilidade de inexistência de provas, insurgindo-se contra a perseguição movida ao juiz - a acusar este coletivo e esta procuradora de "querer safar os polícias". E tudo isso com base em palpites, notícias de TV e textos lidos de través, e sobretudo sem qualquer respeito pelo princípio basilar do direito penal civilizado: ou há prova, e obtida com lealdade, ou a dúvida favorece o réu.

É isso ou a arbitrariedade, é isso ou a barbárie. Sem isso não há nada a que se possa chamar justiça. Mesmo que tantas vezes nos frustre e nos pareça que deixámos escapar criminosos; mesmo que tantas vezes a raiva e a dor nos ceguem e queiramos regressar aos pelourinhos, devemos saber que esse não é, nunca pode ser o caminho. Mais que não seja, se não somos capazes de aderir a princípios, porque um dia pode ser connosco.

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