A utilização de IA na Justiça
A Revolução Digital terá necessariamente de chegar aos tribunais, introduzindo ferramentas de Inteligência Artificial aptas a coligir e organizar informação dispersa em autos “volumosos” e a servir de apoio à decisão dos magistrados. Contudo, o recurso a tais sistemas por juízes - titulares de órgãos de soberania vinculados aos deveres de imparcialidade, independência e responsabilidade previstos nos arts. 202.º, 203.º e 205.º da Constituição - e magistrados do Ministério Público, titulares da ação penal, não pode ficar entregue a iniciativas individuais e voluntaristas. Impõe-se, pois, que uma lei da Assembleia da República fixe as características da plataforma a utilizar, que deve ser própria, adequada e dedicada à atividade do agente judiciário em causa, mas que também estabeleça o âmbito, os limites e as condições do recurso a este auxiliar tecnológico, salvaguardando a integridade da atividade jurisdicional e investigatória no caso do MP, de forma a que o recurso à Inteligência Artificial na Justiça não comprometa a confiança por parte dos cidadãos e empresas no sistema judiciário.
Assim, o diploma deve instituir uma plataforma estatal única, segura e auditável, de uso obrigatório em todos os tribunais e segmentada em diversos módulos - o cível, o comercial, administrativo-fiscal e o penal -, garantindo igualdade de meios (art. 20.º CRP) e uniformidade metodológica e procedimental. A arquitetura há-de assegurar registo automático, completo e inviolável dos comandos e instruções - os prompts - e das respostas produzidas, permitindo auditoria posterior pelos Conselhos Superiores.
Para preservar a neutralidade decisória, a própria plataforma deve conter filtros semânticos que recusem solicitações enviesadas em favor de qualquer litigante. A IA não pode aceitar instruções destinadas a sustentar exclusivamente a pretensão de uma parte, sob pena de violação dos princípios da imparcialidade e consequente nulidade do ato.
Num primeiro momento, os comandos e instruções (ou seja, os prompts) a dar à “máquina” devem estar pré-determinados no dashboard, sem possibilidade de outras solicitações. Por seu lado, as tentativas de proferir decisões automatizadas, sem intervenção humana qualificada, devem ser bloqueadas, evitando que o algoritmo se substitua à ponderação jurisdicional.
As funcionalidades legítimas limitar-se-ão à pesquisa jurisprudencial, à análise de coerência normativa e ao apoio estilístico-redacional; permanecerá vedada a geração automática de sentenças, despachos, acusações ou qualquer tipo de decisões.
A governação algorítmica impõe publicação do núcleo do código-fonte, auditorias independentes a cada atualização e plena conformidade com o Regulamento Europeu de IA de 2024, que qualifica aplicações judiciais como sendo de “alto risco” e exige avaliação prévia de impacto.
Diferentes perfis de acesso distinguirão juízes, procuradores titulares da ação penal e oficiais de justiça, segundo os respetivos estatutos, reforçando a transparência, a rastreabilidade e a responsabilização.
Como tenho dito, por diversas vezes, a tecnologia pode, deve e tem de servir a celeridade e a qualidade da Justiça; mas, sem um quadro normativo rigoroso e ponderado que trave a proliferação de soluções privadas, uniformize a plataforma e sancione desvios, corremos o risco de criar poderes decisórios opacos e parciais. Ao legislar nesta matéria, de forma competente, o legislador honrará a sua tradição jurídico-constitucional e garantirá que a Inteligência Artificial não se converta, entretanto, num atalho que comprometa a dignidade da função jurisdicional. Porque deixar ao livre-arbítrio de cada agente do judiciário a utilização ou não de produtos de Inteligência Artificial, é um caminho que não deve ser seguido.