A traição de Viktor Orbán

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O primeiro-ministro da Hungria é, desde o passado dia 1 e até ao fim do ano, o presidente rotativo do Conselho da União Europeia.

Era suposto que assumisse, de forma clara e leal, as visões e as prioridades da UE. Só que já percebemos há muito que Orbán é mesmo um “cavalo de Troia” ao serviço da Rússia de Putin dentro do nosso seio europeu.

Depois de ir a Kiev - onde insistiu com Zelensky numa espécie de “paz negociada” que mais não seria que uma cedência de territórios ucranianos ao agressor russo, em vez de se pôr claramente ao lado do agredido, no seu direito de resistir ao invasor - Orbán teve o desplante de visitar Putin em Moscovo, numa altura em que veste a pele de uma função europeia que, embora tenha perdido poderes desde o Tratado de Lisboa (com a criação do Conselho Europeu, que será presidido por António Costa, a partir de dezembro), se mantém com um forte poder simbólico de representação europeia.

O ato de Orbán não é menos que traição. No momento em que devia mostrar que está do lado europeu - como seria sua obrigação -, o líder do Executivo húngaro agravou receios de que está a fazer o jogo do Kremlin. Não devemos desvalorizar o sucedido. Os sinais da ofensiva autocrática sobre o nosso mundo democrático e liberal são demasiado evidentes.

Até que ponto continua a ser seguro e legítimo manter a Hungria como parceiro fiável - com acesso a estratégias confidenciais e documentos sensíveis - de UE e NATO, com este tipo de comportamento? Jens Stoltenberg, secretário-geral da Aliança Atlântica, lançou o aviso: “Orbán não está a representar a NATO, está a representar o seu próprio país.”

A Europa não gostou de saber da visita-surpresa (não-programada, muito menos validada pelos seus pares) de Orbán à capital russa. Budapeste insiste na conversa de que a política do Governo de Orbán é que “ambas as partes” precisam de negociar o fim do conflito e que “não há solução militar”.

Agir sem mandato

O ainda presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, atacou Orbán, recordando-lhe que a presidência rotativa da UE “não tem mandato para dialogar com a Rússia”. “A Rússia é o agressor, a Ucrânia é a vítima. Nenhum debate sobre a Ucrânia pode ter lugar sem a Ucrânia”, insistiu Michel.

Também a presidente da Comissão Europeia alertou o primeiro-ministro húngaro que “apaziguar Putin” não vai impedi-lo de prosseguir com a invasão ao território ucraniano, após ser anunciado que Viktor Orbán está em Moscovo. “O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán está de visita a Moscovo. Apaziguar Putin não vai fazê-lo parar. Só unidade e determinação poderão abrir caminho para uma paz compreensiva, justa e duradoura na Ucrânia.”

Irónico, o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, atirou, dirigindo-se a Orbán: “Os rumores da sua visita a Moscovo não podem ser verdade, PM Orbán. Ou podem?”

A líder dos liberais no PE, a francesa Valérie Hayer, foi mais longe: “O primeiro-ministro Orbán está a agir sem mandato e não no interesse da UE. Se estes rumores se confirmarem, condenamos este esforço nacional a solo.”

O alarme dos bálticos e dos nórdicos

O primeiro-ministro finlandês, Petteri Orpo, descreveu a notícia da visita como “perturbadora”. A visita de Orbán, afirma, demonstra “desrespeito” pelos deveres da presidência e “mina” os interesses da União Europeia.

Os Governos da Estónia, Suécia, Alemanha e Chéquia também criticaram a deslocação do presidente em exercício da União Europeia à Rússia e sublinharam que, em Moscovo, não representa os 27. Kaja Kallas, primeira-ministra da Estónia e futura chefe da diplomacia europeia, garantiu que Órban “de forma alguma representa Bruxelas ou as posições dos 27”. “Orbán está a explorar a posição da Presidência da UE para semear a confusão. A UE está unida, apoia claramente a Ucrânia e é contra a agressão russa”.

Ulf Kristersson, primeiro-ministro da Suécia, destacou a “irresponsabilidade e a deslealdade” do primeiro-ministro húngaro. Envia o sinal errado ao mundo exterior e é um insulto à luta do povo ucraniano pela sua liberdade. Viktor Orbán está sozinho nesta questão. Não fala em nome da União Europeia e não fala em nome de outros chefes de Estado ou de Governo da UE”.

Já Olaf Scholz, chanceler alemão, preferiu separar as coisas: Orbán desloca-se a Moscovo para se reunir com Putin “na qualidade de primeiro-ministro húngaro”. “O Conselho Europeu é representado na política externa por Charles Michel. A posição da UE é muito clara: condenamos a guerra de agressão russa. A Ucrânia pode contar com o nosso apoio.”

Petr Fiala, primeiro-ministro da República Checa, deixou bem claro que Orbán não representa os interesses checos ou os da UE em Moscovo. “Também não tem qualquer mandato para negociar em nosso nome. A posição checa é clara: Putin é o agressor, nós apoiamos a Ucrânia.”

Soberanista e próximo de Putin

O que quer Orbán, afinal? Mostrar aos parceiros europeus que andam a desperdiçar uma “oportunidade para a paz”? Mas que paz? A paz miserável de Putin, de ficar com 20% da Ucrânia e obrigar Zelensky a ceder?

Não, obrigado.

Estamos num tempo contraditório em que os líderes autocráticos que desdenham as instituições da democracia liberal se aproveitam dos seus benefícios. Enquanto Orbán lidera por seis meses o Conselho da União Europeia, a Rússia ficará à frente do Conselho de Segurança da ONU.

Soberanista, próximo de Putin, Orbán prepara a criação de um novo grupo político europeu, os Patriotas pela Europa, com pares como os soberanistas checos e austríacos, tentam atrair eurodeputados da Identidade e Democracia e prometem reforçar a ideia de uma “Europa das Nações” que, claramente, se opõe ao aprofundamento do Projeto Europeu, pretendendo degradá-lo por dentro.

Os sinais de Astana

Devemos também olhar para o que se passou em Astana, a capital do Cazaquistão, a propósito da reunião da Organização de Cooperação de Xangai (OCS).

No segundo encontro pessoal em mês e meio, Putin e Xi Jinping celebraram o “melhor período” de relações entre os seus países.

Ao dirigir-se a Xi, Putin deixou clara a sua satisfação com o estado das relações sino-russas, “que atravessam o melhor período da sua história”. “Elas fundam-se nos princípios da igualdade, de benefício mútuo e de respeito pela soberania de cada um”, afirmou o presidente russo.

Xi Jinping respondeu no mesmo tom, admitindo estar “felicíssimo por rever o seu velho amigo”. Xi desejou que os dois países consolidem a sua amizade “pelas gerações futuras”, numa altura em que a China se prepara para assumir a presidência rotativa da OCS. Putin e Xi têm já marcada nova reunião em outubro, durante a cimeira de líderes dos BRICS, na cidade russa de Kazan.

Pequim e Moscovo acreditam que a influência ocidental do pós-Guerra Fria pertence ao passado, e que são necessárias alternativas, sobretudo face às recentes taxas aplicadas aos produtos chineses fortemente subsidiados, por parte de EUA e UE, e com a proibição de exportação da tecnologia ocidental para a China.

A Organização de Cooperação de Xangai passou a incluir dez países: para lá de China, Rússia, Índia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tajiquistão e Irão, a velha aliada de Moscovo, a Bielorrússia, foi confirmada como décima admissão.

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