A tal da reflexão do PS

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O recente resultado eleitoral do Partido Socialista (PS) tem vindo a provocar, em vários dos seus militantes, o apelo a uma reflexão que permita o seu ressurgimento eleitoral e, presume-se, uma conexão distinta com os eleitores.

Ao mesmo tempo, regressam os apelos às “grandes reformas” de que o país necessitará, como se esse brado não tivesse sido o mais constante nas últimas três décadas. A estes últimos palestrantes, deve assinalar-se apenas que as reformas se fizeram. Fizeram-se, no entanto, como pelos vistos as sabemos fazer, ou seja, enquanto movimentos e ajustamentos corporativos, enquanto despejar de dinheiro sobre realidades sem provavelmente o nível de planeamento e de longo prazo de que careceriam, com avanços e retrocessos sucessivos consoante o brado público ou o aconselhamento mais ou menos paroquial. Em todo o caso, mesmo no contexto que conhecemos, deve assinalar-se o progresso significativo no acesso e no sucesso da Educação, na redução da pobreza, nas infraestruturas, mesmo com as suas limitações, na introdução e generalização da tecnologia em toda a sociedade.

Isto também são reformas - podem é não ser aquelas que os empresários do regime e os seus arautos mais desejam para o seu trimestre de resultados.

Noutras áreas - por exemplo, a Justiça, a Saúde Pública, a agilidade e desempenho da Administração, uma maior autonomia, finalmente, da economia perante o Estado, a relação funcional e financeira devida entre Estado, regiões e autarquias locais - a realidade será outra e provavelmente porque são áreas em que os decisores políticos, governos e Parlamento, acabaram por externalizar, afinal, o seu papel aos próprios regulados. Ou porque os partidos de poder se sentiram demasiado reféns de muitos dos seus próprios atores e clientes em simultâneo. Ou porque nunca se elegeram efetivamente áreas, projetos e desígnios nacionais, para além das Finanças Públicas, que são de facto fundamentais - e provavelmente por receio da reação dos renegados e da sua consequência eleitoral. Tudo isto foi sumariamente exemplificado na última semana ao ver-se que os médicos do SNS podem ganhar em horas extraordinárias, ao fim de semana, em três meses, o que não ganham pelo seu trabalho em cinco anos. Seguramente também um resultado de uma “reforma” e de um objetivo público, diga-se.

E quanto à autocrítica que se exige ao PS? Quer-se uma escala para um futuro sucesso eleitoral ou efetivas propostas de mudança, para melhor? A medida do sucesso que será aplicada ao Chega será apenas a do aumento das molduras penais da corrupção e crimes conexos e a criação de mais entraves à imigração. Perante outros partidos, ser-se-á sempre mais exigente.

Pode deixar-se, como contributo de reflexão, algumas notas. Uma delas tem que ver com o enorme distanciamento dos eleitores até aos 35 anos das propostas do PS. Isto não se resolve, manifestamente, com o modelo dos anos 80 das juventudes partidárias, que provavelmente deveria acabar. Deve ser abordado de outra forma e não apenas do ponto de vista comunicacional. O PS tornou-se pouco sexy para quem não é pensionista. E, portanto, ou a mensagem não lhes faz sentido ou nem sequer a conhecem ou os mensageiros são duvidosos. O que se passa? Seria bom saber.

Outra nota tem que ver com a própria base de funcionamento interno de um partido, que não favorece, em termos reais, a rotatividade republicana nos cargos e nos deveres ou a discussão de temas verdadeiramente políticos assentes em propostas e debate que extravasem eleições internas ou a criação de sindicatos de voto para uma qualquer conjuntura. Os partidos políticos hoje, até para quem se interessa pela política, apresentam um interesse muito reduzido, formatados em meras formas de referenda e eleição formal de pessoas, a escalas mais micro ou mais macro. Na linguagem moderna da gestão que tantos prazeres devolve, os clientes do partido devem ser todas as pessoas, não apenas as que podem eleger o senhor X para a concelhia ou para a secção.

Assim, seria útil que o PS, independentemente de qualquer potencial vantagem eleitoral, pusesse em causa o seu modelo, datado, num contexto que já não é o da construção de base da democracia e do sistema eleitoral. De máquina para se apresentar a eleições, nacionais e locais, para uma máquina de discussão de temas, de preparação de propostas concretas e de acolhimento de pessoas, como até já foi mais do que hoje, pondo-se a si em causa quando possível. As secções de um partido não devem ser casas bafientas e fechadas, mas espaços abertos e proativos de desafio, a quem o aceite, com as suas réplicas, melhoradas, no espaço digital onde estamos. De futuro, não vale a pena procurar competir muito em arruadas. Já passou.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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