A sombra de Maduro e a lanterna de Diógenes: um alerta para a Democracia Global

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Sob a égide de Nicolás Maduro, a Venezuela, outrora próspera, tem sido palco de uma crise económica de proporções épicas, exacerbada pela repressão sistemática de vozes dissidentes e um êxodo populacional de magnitudes quase bíblicas. Tal diáspora e o garrote repressivo, são efeitos directos das políticas despóticas do Governo de Maduro.

Dado este contexto, não é surpreendente que, em 2020, o Procurador do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan, tenha reconhecido a existência de “indícios razoáveis” de que funcionários do Governo e do aparato militar venezuelano estavam implicados numa série de desaparecimentos, execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias e actos de tortura de adversários políticos.

Volvidos 3 anos, emergiu um rasgo de esperança (em Outubro de 2023) quando os Estados Unidos decidiram suspender, ainda que parcialmente, as sanções económicas direccionadas ao negócio petrolífero venezuelano. A suspensão foi negociada em troca de compromissos assumidos por Maduro de que as eleições presidenciais de 2024 decorreriam em estrita observância das leis eleitorais vigentes. Essa promessa foi, todavia, quebrada quando María Corina Machado, luminar da oposição, foi arbitrariamente proibida de concorrer, precipitando a reactivação das sanções norte-americanas.

As eleições de 28 de Julho posicionaram, frente a frente, Nicolás Maduro, herdeiro político de Hugo Chávez, e Edmundo González, uma figura menos conhecida, apoiada por Machado. Na calada da noite de 29 de Julho, após um ciclo eleitoral repleto de denúncias de irregularidades e estratégias de intimidação dos eleitores, a Comissão Eleitoral, sob a firme influência de Maduro, proclamou-o vencedor de um novo mandato de 6 anos - sem fornecer provas que respaldassem tal afirmação.

Em suma, o evento eleitoral transgrediu princípios basilares. O Carter Center, a única entidade internacional autorizada a observar e a avaliar o processo eleitoral, concluiu que o mesmo “não cumpriu os padrões internacionais de integridade eleitoral em nenhuma de suas etapas”.

Seguiram-se reacções de foro internacional, que evidenciaram uma polarização notável. Estados como Antígua e Barbuda, Bolívia, Cuba, República Dominicana, Honduras, Nicarágua, São Vicente e Granadinas, além da Rússia, da China e do Irão, endossaram os resultados e exaltaram Maduro - quiçá entusiasmados pela sua perseverança e constância na perpetuação de um sistema totalitário.

Paralelamente, sete nações da América Latina e Caraíbas repudiaram a autenticidade do processo, tendo levado o ministro Yván Gil a suspender relações diplomáticas entre a Venezuela e as mesmas.

Por sua vez, os Estados Unidos, através do diplomata Brian Nichols, condenaram veementemente a ausência de uma divulgação pormenorizada dos resultados dentro do prazo estipulado pela legislação venezuelana. Findo o prazo, Nichols declarou existirem “provas indiscutíveis” de que o candidato da oposição, Edmundo González, havia vencido a eleição - sentimento que foi posteriormente reiterado pelo secretário de Estado Anthony Blinken (US Mission to the Organization of American States).

No seio da União Europeia, Josep Borrell expressou cepticismo em relação aos resultados eleitorais. Contudo, a unanimidade necessária para uma reacção colectiva foi obstruída pelo veto da Hungria. Estamos perante um desafio directo à capacidade de funcionamento da União Europeia, que exige uma reflexão profunda sobre a necessidade de reformar o seu processo decisório e, assim, evitar que futuros impasses comprometam a acção colectiva em momentos críticos.

Internamente, a Venezuela continuou a ser um caldeirão de tensões. Multidões de venezuelanos inundaram as ruas em protesto contra as anomalias eleitorais, enfrentando uma resposta brutal do Governo. Maduro, comprovando a sua inclinação para tácticas repressivas, advertiu que os manifestantes detidos seriam confinados a prisões de segurança máxima e sujeitos a penas mínimas de 15 anos. Mais, promoveu práticas de vigilância e denúncia mútua entre os cidadãos através de uma aplicação móvel denominada VenApp. Embora originalmente concebida para denúncias sobre Serviços Públicos, a app foi astutamente adaptada para fins de controlo antigovernamental.

Na esfera internacional, Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, anunciou a sua intenção de solicitar ao Tribunal Penal Internacional a emissão de um mandado de detenção de Maduro, enfatizando a gravidade da situação ao relembrar que este havia prometido um “banho de sangue” e estava a cumprir essa promessa de forma perturbadora.

Passando do particular para o geral (isto é, do caso da Venezuela para o mundo) um relatório do Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, intitulado The Varieties of Democracy, sinalizou um declínio alarmante na qualidade democrática no plano global, com níveis comparáveis aos observados antes do desmoronamento da União Soviética, em 1985.

Com efeito, as eleições de 2024, celebradas em pelo menos 64 países, revelaram que a predominância da democracia não é uma verdade universal, como evidenciado pelos processos eleitorais (a título de mero exemplo) no Paquistão, na Bielorrússia e na Rússia, onde ocorreram irregularidades, interdições de candidaturas e/ou eliminação de opositores, comprometendo a integridade desses pleitos (The Guardian).

Este cenário global reflecte-se vivamente na crise venezuelana, onde as recentes eleições demonstraram que a batalha pela integridade do processo eleitoral, pedra angular da democracia, persiste como desafio crítico. A necessidade de vigilância contínua é imperativa.

Tal como Diógenes de Sinope, que percorria as ruas de Atenas, com uma lanterna, em busca de um homem honesto, os eleitores têm o direito inalienável de escrutinar e escolher os seus representantes, sob a luz da verdade e da transparência, eliminando fontes de desinformação e de opressão, com o poder de seu voto, exercido sem coacção, sem medo, sem fraude.


Nota: A autora não escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico.

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