A 'selfie' olímpica que prova absurdo da divisão coreana

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Quando vi a fotografia dos medalhados da competição de pares mistos de ténis de mesa a tirarem sorridentes uma selfie não pude deixar de pensar no absurdo que é a divisão da Península Coreana. A segurar o telemóvel estava um dos atletas sul-coreanos, e a posar com ele estava a sua parceira, a dupla norte-coreana e ainda os chineses, que foram quem ganhou o Ouro. No pódio olímpico, os sul-coreanos ficaram com o Bronze e os norte-coreanos com a Prata, mas a imagem da selfie tirada por Lim Jong-hoon em Paris, com um telemóvel Samsung, mostra em todos a alegria partilhada, ultrapassados já os momentos tensos da competição.

Visitei três vezes a Coreia do Sul, mas nunca a Coreia do Norte, a não ser que contem os metros dentro dos famosos pavilhões azuis de Panmunjon, onde foi assinado o Armistício de 1953 e que, há poucos anos, até foram visitados por Donald Trump, quando era presidente dos Estados Unidos e tentava convencer Kim Jong-un a abandonar a retórica belicista.

Na época, o presidente sul-coreano era Moon Jae-in, filho de refugiados do Norte que durante a Guerra de 1950-1953 se refugiaram em Busan, no sul da península.

Em duas dessas visitas à Coreia, conversei com um jornalista indonésio que visitava com frequência tanto Seul como Pyongyang e dizia que não tinha dúvidas nenhumas de que era o mesmo povo a sul e a norte do Paralelo 38. Apesar de décadas e décadas de separação, e de ideologias bem distintas a marcar a evolução das sociedades, mais de dois mil anos de história comum forjam laços difíceis de romper. E a verdade é que das muitas vezes que conversei com sul-coreanos, nunca ouvi palavras de hostilidade para com os irmãos do norte. As críticas sempre foram dirigidas contra o regime comunista fundado com apoio soviético no final da Segunda Guerra Mundial, e mais tarde apoiado também pela China. Um regime comunista que se transformou numa ditadura ultranacionalista, liderada por gerações da mesma família. O Kim que hoje manda é neto do Kim Il-sung que se destacou no combate aos japoneses, impôs o sistema de partido único na metade da península que lhe foi entregue por Moscovo e tentou, em 1950, uma reunificação pela força que falhou, porque os Estados Unidos vieram em socorro do Sul.

Admito que foram poucas as vezes que conversei com norte-coreanos, e mesmo assim é difícil tirar muitas conclusões do que dizem, até do diplomata que me visitou no DN em 1993, quando Lisboa era uma das raras capitais europeias a ter embaixadas das duas Coreias. Mas ainda antes de ir pela primeira vez à Coreia do Sul testemunhei, há mais de uma década, num congresso internacional de jornalistas, em Moscovo, uma conversa amistosa entre as duas delegações coreanas, com os presidentes das agências noticiosas, a Yonhap e a KCNA, a apertarem a mão todos sorridentes (ainda tenho a fotografia no meu telemóvel).

A Coreia do Sul é um país de sucesso como há poucos. A sua economia é das mais dinâmicas do mundo, graças a gigantes como a LG, a Hyundai e, claro, a Samsung. Também a sua cultura, sobretudo na versão pop, tem alcance mundial, seja via a música, as séries televisivas e os filmes, ou uma arte marcial como o taekwondo, que ainda há semanas teve uma exibição em Lisboa, na Praça do Comércio, por iniciativa da embaixada.

Mas aquilo que sempre me impressionou mais foi a forma como a ditadura militar dos primeiros tempos, apoiada por Washington na lógica da Guerra Fria, evoluiu para uma democracia, com as manifestações nas ruas de estudantes, de trabalhadores, de mães de família, a conseguirem um milagre. Foi por si próprios que os sul-coreanos conquistaram a democracia, como foi por si próprio que este país de maioria budista, noutra era, descobriu o cristianismo, hoje tão presente que as cruzes das igrejas competem, no cenário urbano, com os ecrãs publicitários gigantes. E os Jogos Olímpicos de 1988 em Seul, os tais em que a nossa Rosa Mota ganhou o Ouro na maratona, tiveram um papel muito importante nessa transformação democrática digna de aplauso. Só por curiosidade, sublinhe-se que a atleta continua muito acarinhada pelos coreanos, que também sabem que o primeiro europeu a visitar a península foi o português Ji-Wan-Myeon-Je-Su, leia-se João Mendes.

Uma Coreia reunificada parece algo distante de acontecer. Já houve momentos de maior diálogo, inclusive com possibilidade de famílias separadas pela guerra se reencontrarem e, até, equipa desportiva única. Mas, sobretudo, o fosso económico entre as duas Coreias é incomparável com o que existia entre as duas Alemanhas em vésperas da reunificação de 1990. Creio improvável que a dinastia Kim desista do poder e, portanto, qualquer aproximação será sempre mais motivada pela necessidade de recorrer à ajuda do Sul. E sempre de forma muito reticente. Também é evidente que entre os países vizinhos não há qualquer entusiasmo em ver uma Coreia unida, a somar 51 e 26 milhões de habitantes, com as riquezas naturais do Norte a virem em reforço do empreendedorismo do Sul, e com uma centralidade impressionante num Indo-Pacífico que ele próprio está cada vez mais no centro do mundo.

Há mais ou menos 1500 anos a Coreia estava dividida em três reinos, Goguryeo, Baekje e Silla. Acabou por se reunificar sob a égide de Goguryeo, depois Goryeo, que é de onde vem o nome do país na maioria das línguas. Há pouco mais de um século, a Coreia viu a Dinastia Joseon ser derrubada e a península ser transformada numa colónia japonesa (nos Jogos Olímpicos de Berlim, o coreano Sohn Kee-chung ganhou a maratona, mas no pódio fez questão de ocultar a bandeira japonesa na camisola). O país acabou por libertar-se em 1945. Em 1948, aquilo que devia ser uma divisão temporária, oficializou-se com a criação da República da Coreia e da República Democrática Popular da Coreia. Nada, porém, é definitivo e a selfie em Paris, de quatro jovens coreanos (e dois chineses) juntos e felizes é inspiradora. Muito mais inspiradora para uma futura reunificação do que a bomba nuclear que os Kim consideram ser o seu seguro de vida.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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