A resposta só pode ser uma: a espiritualidade da Europa
Em 1946 realizavam-se, na ressaca da IIª Guerra Mundial, as célebres Conferências sobre o espírito europeu, no contexto dos Encontros Internacionais de Genebra nesse mês de Setembro perpassado de uma nostalgia da própria Europa. Nostalgia que fazia com que em 1990 um ensaísta como Xavier Tilliette lembrasse que tal nostalgia de 46 era da mesma natureza que a de Novalis, ou de Schlegel, os quais, olhando dos seus espaços e tempos próprios, tivessem concebido a utopia-Europa como a única possível esperança para uma humanidade que haveria de reerguer-se, por duas vezes, das ruínas do seu corpo cravado de balas, miséria, oportunismo e natureza inata para a autodestruição. Tilliette, tal como outros intelectuais (Hans-Georg Gadamer, Hans Michael Baumgartner, Erich Heintel, Manfred Buhr, José Barata-Moura, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Lucien Sève, Jacques Milhau), acabaram por imitar o encontro de 46 em 1988, em Paris. As discussões levadas a cabo nas universidades de Oslo,de Helsínquia, de Roterdão, de Siena e de Pisa e nas Academias das Ciências de Praga, de Moscovo e de Pequim, para além da discussão que ocorre, em 89, na Universidade Hebraica de Jerusalém, culminam no livro que hoje quero recordar e que em 1999, para a edição portuguesa, o editor da Cosmos, Mário Reis, colocou ao dispor de quantos quisessem ler esse conjunto de comunicações de dez anos antes.
É, com efeito, um livro que devemos recuperar (e que pede reedição), pois que o projecto de pensamento que nesse volume de ensaios se projecta diz-nos respeito, a nós europeus, a nós portugueses. A tese que percorre todas as intervenções é a seguinte: a Europa só faz sentido unida e existindo na diversidade das suas culturas e línguas, das suas visões de mundo. É o estudo do património cultural do Velho Continente que os diversos pensadores e professores, escritores e ensaístas pretendem analisar para defender essa diversidade cultural. Diversidade cultural que - mais em 1990 que em 99, mas mais em 99 que nem 2025 - era um traço ainda visível numa Europa que, em todo o caso, viu na década de 90 a guerra civil da Jugoslávia e aviões a bombardearem Sarajevo. Uma Europa que, para se pensar, como escrevia Antonio Gardano (o grande responsável por esses encontros em torno da espiritualidade europeia) teria de saber partir das várias interpretações da realidade para, negando ou combatendo a “algazarra confusa dos meios de comunicação de massas, dos políticos e dos académicos e dos mais ou menos bem-pensanetes” (p.17), recolhendo informação de forma rigorosa e sistemática, restabelecer a verdade científica e racional do debate europeu - e que é, em bom rigor, um debate humano, mundial.
Em face do que recentemente aconteceu entre Trump e Zelensky e o vice-Vance, é este um extraordinário livro que nos ajuda a pensar o papel da Europa hoje. O restabelecimento do logos, isso é o que se pede a quem tem as rédeas do poder e da diplomacia europeia: Costa e outros intervenientes da alta esfera decisória europeia e que vai do BCE à Comissão dirigida por Ursula Van der Leyen. E podemos, talvez, pensar se perante as questões económicas e militares que se colocam em cima da mesa das negociações entre Rússia e EUA e Ucrânia - com a Europa não sendo senão um observador distante, como se não estivesse ali o nosso futuro - não é justamente a questão da memória e dos valores europeus que urgentemente se impõe defender.
Uma das questões centrais que lemos no ensaio de Tilliette diz respeito à impossibilidade de apagar na Europa os milhares de anos de histórias de povos que se cruzaram, se misturaram, se combateram e se harmonizaram. Para além da estrutura política que o autor exigia no início de 1990 como condição para se fortalecer a Europa pós-Muro de Berlim, pós-Cortina de Ferro, o que ressaltava desse texto axial era a seguinte ideia-chave: os impérios europeus, todos eles se suicidaram. Desde Carlos Magno a Carlos V, desde a Liga de Napoleão à Europa das Luzes, sem esquecer a Europa Revolucionária, até ao pesadelo de Hitler, corolário dos nacionalismos oitocentistas e de matriz fascista-burguesa, o que temos é um desfile de fantasmas da História que em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, faz Ivan dizer que parte para o “mais agradável de todos os cemitérios”. Assim, entre desejo de unidade militar e política, económica e social, o continente que ora é lido como um prolongamento da Ásia, ora é concebido como guarda-avançada do Ocidente; esse Ocidente que atravessa o Atlântico e segue a sua aventura nesses Estados Unidos da América hoje governados por idólatras da desmemória e verdadeiros assassinos da diplomacia e das regras da mais básica convivência entre países; a Europa hoje parece ser hoje o lugar onde, uma vez mais, os dados da História se lançam. E lançam-se com jogadores que ignoram, talvez, o risco desses dados serem lançados de olhos fechados em relação à História e suas lições. Oswald Spengler, no seu clássico A Decadência do Ocidente, inspirador livro que Heidegger lê até à saciedade, fala da Europa de finais do século XIX e inícios do século XX como um verdadeiro cadáver, esse que Thomas Mann lê nos seus romances e supremamente na figura de Adrien Leverkuhn. A cena entre Trump e o Zelensky, para gáudio de Putin, o autocrata que tem a América refém da sua estratégia de fazer deslocar a ajuda à Ucrânia para as oligarquias russo-americanas que dividirão o saque, exige que os políticos europeus oponham às visões do inferno de uma Europa esventrada, a única utopia realizável: a redescoberta do património espiritual europeu. Só isso salvará a Europa e os próprios Estados Unidos: a fractura entre o Leste e o Oeste, igualmente só por meio de uma profundíssima reflexão sobre este globalismo do deus-dinheiro e da luta por matérias-primas pode fechar-se. A Europa é o Continente que inventou o Estado Social e tem hoje as últimas democracias. Enfrentar o diabólico plano de Musk e de Trump e de Vance e de Putin e de outros autocratas - o plano de tudo reduzir ao nada que vale tudo - isso impõe-nos uma decisão: apostar não na guerra, mas na paz sem armas. Não na paz armada. Apostar no espírito, na diplomacia e não ceder aos monstros
Professor, poeta e crítico literário
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico