A Quinta República está em crise, com Le Pen, mas também sem ela

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Havia até agora uma grande incógnita nas presidenciais francesas de 2027: quem iria tentar impedir que Marine Le Pen chegasse finalmente ao Palácio do Eliseu? Desde a condenação, ontem, da líder da Reunião Nacional (RN), antiga Frente Nacional (FN), e a sua inelegibilidade por cinco anos, agora há uma segunda incógnita: quem ocupará o lugar de Le Pen no boletim de voto? E, na verdade, até passou a haver uma terceira incógnita: como sairá a democracia francesa desta crise anunciada?

Pouco importa discutir se a condenação é justa, o quanto os partidos abusam dos fundos públicos, ou a politização da Justiça. Com Emmanuel Macron impedido constitucionalmente de disputar um terceiro mandato e Le Pen despojada de direitos políticos até 2030, toda as especulações são possíveis sobre que nomes podem emergir como favoritos a ser o próximo presidente. Sempre se pode dizer o primeiro-ministro François Bayrou, mas é demasiado visto como um homem do passado; e repescar antigos presidentes não faz grande sentido, pois Nicolas Sarkozy está a contas com a Justiça por financiamento ilegal de campanha, e François Hollande, agora deputado, não entusiasma as multidões; quem sabe se Ségolène Royal, apesar da derrota que tem no currículo, não tenta de novo ser a primeira presidente?

Claro, sempre há Jean-Luc Mélenchon, o campeão de uma França Insubmissa que, como projeto, tem o objetivo de servir de barreira à extrema-direita e direita, mas sem criar uma solução de esquerda; igualmente se pode tentar identificar nomes no campo macronista, talvez até de figuras que foram marcando distância do presidente, como o antigo primeiro-ministro Édouard Philippe; outros nomes podem ainda surgir da direita clássica, aquela que noutros tempos se dizia neogaullista, ou do campo socialista, mas aceitam-se apostas.

Primeiro Jean-Marie, depois Marine: os Le Pen, uma família em busca da Presidência.
Primeiro Jean-Marie, depois Marine: os Le Pen, uma família em busca da Presidência.

Seja quem for, a velha fórmula da Frente Republicana já não deverá chegar para garantir uma vitória na segunda volta, com ou sem Le Pen. Funcionou muito bem em 2002, quando Jacques Chirac esmagou um surpreendente Jean-Maria Le Pen. Foi quase uma festa a campanha de então, com boa parte do corpo diplomático estrangeiro presente num comício de Chirac, incluindo o embaixador português, e eleitores comunistas de toda a vida a fazerem fila para ir reeleger o presidente de direita, daí os 82% contra 18%; foi funcionando cada vez pior de 2017 (66% contra 34%) para 2022 (59% contra 41%), quando Macron derrotou por duas vezes uma Le Pen filha que soube, ao longo dos anos, limar muitas das arestas da extrema-direita, trocando até o F de Front pelo R de Rassemblent, uma palavra que só por conveniência se traduz por Reunião, e que tradicionalmente fazia parte do léxico dos partidos fiéis aos ideais do general Charles de Gaulle, líder da França Livre na Segunda Guerra Mundial e fundador em 1958 da Quinta República.

À estratégia de normalização, Le Pen deverá agora acrescentar a de vitimização, e não podendo ser candidata, avançar com um dos seus protegidos, com Jordan Bardella a ser uma das hipóteses mais fortes. Com Le Pen a recorrer da sentença, que além da inelegibilidade contém uma pena de prisão de quatro anos que deverá passar por uso de pulseira eletrónica, adivinha-se que, à já tradicional denúncia da classe política, a RN associará a denúncia do chamado governo dos juízes.

De partido ultraminoritário quando nasceu em 1972, com uma ideologia claramente fascista, a antiga FN foi ganhando terreno nas décadas de 1980 e 1990, só com o sistema eleitoral maioritário a duas voltas a servir de travão à entrada em força no parlamento. Por isso, o abandono imediato do sistema proporcional experimentado nas legislativas de 1986, que deu 35 deputados à extrema-direita, e a aplicação estrita de um cordão sanitário em redor dos candidatos da FN, fazendo com que apesar dos 10% dos votos nas legislativas de 1988 só elegesse um deputado. À esquerda, a ideia de cordão sanitário foi mantida sem dificuldade, mas à direita começou a haver brechas à medida que a FN ia ganhando influência, com alguns políticos a falarem de coligações ocasionais e finalmente o escândalo de nas eleições legislativas de 2024 o próprio líder dos Republicanos, Éric Ciotti, ser expulso do grande partido da direita moderada por procurar uma aliança formal com a extrema-direita. Em paralelo, por causa do diferente sistema eleitoral, as europeias foram-se afirmando como o terreno de maior sucesso dos candidatos da FN/RN, a ponto de darem recursos ao partido que a dada altura, concluiu agora a Justiça, foram usados indevidamente e justificam esta condenação de Le Pen e de vários dirigentes.

Le Pen não se dá por vencida e deixou isso bem claro na entrevista televisiva transmitida já depois de condenada. E mais do que as expressões de simpatia que recebeu do estrangeiro, até do Kremlin, interessa sim o que pensam dela e de tudo isto os franceses. A ascensão da RN tem causas profundas, assim como a crise dos grandes partidos tradicionais franceses, hoje mera sombra do passado, quando eram liderados por um Chirac, à direita, ou por um François Mitterrand, à esquerda. O voto dos franceses ao longo dos últimos anos - e a par da subida da RN também importa olhar a dos Insubmissos - tem uma mensagem política de desilusão e de revolta que tem de ser entendida e respondida, e não simplesmente ignorada por quem governa. E dado o protagonismo do chefe do Estado no sistema político francês, quem for eleito em 2027 é de extrema importância, até para a própria Europa.

Se a Quinta República parece estar em risco, não se sabendo o que virá a seguir, não deixa de ser relevante que na difícil época que vive o Velho Continente, um pouco esquecido pelo aliado americano, seja a França, graças ao legado de De Gaulle, que mais condições tem de se afirmar como grande potência, pois é senhora do seu próprio arsenal nuclear. Serão, pois, decisivos estes dois anos até os franceses elegerem o sucessor ou a sucessora de Macron. Decisivos para eles e para o resto dos europeus. Ninguém fica indiferente ao destino da França. E Le Pen já disse que não desiste.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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