A propósito de cancros
Dois acontecimentos ligados a cancros foram motivo de grande interesse na imprensa portuguesa. Um deles, aliás na imprensa mundial. Falo obviamente da comunicação ao mundo, feito pela própria, de que a princesa Kate tinha um cancro. Fê-lo sentada num banco de jardim, com um ar frágil, de uma forma comovente. Com essa comunicação pretendeu explicar a sua ausência da vida pública nas últimas semanas, e acabar com varias especulações. Admitamos que não mentiu, limitando-se a omitir informação mais pormenorizada. Foi clara e objectiva. Disse ter feito poucos meses antes uma grande operação abdominal, a uma doença que nessa altura se pensava não ser maligna, mas que infelizmente depois da análise histológica da peça operatória, afinal tinha cancro. Nos dias de hoje é muito raro colocar-se uma indicação cirúrgica sem saber previamente se estamos perante uma lesão maligna. E a haver essa dúvida é possível durante a intervenção, enviar biopsias intra-operatórias ao laboratório de anatomia patológica, aquilo a que chamamos exame extemporâneo, e obter nessa altura informação mais precisa. Ora mesmo esses exames, eventualmente realizados voltaram a não confirmar a existência de cancro, sendo este apenas confirmado na análise de tudo o que foi tirado, depois de examinada toda a peça operatória. A princesa Kate não quis dizer a origem do tumor, esteve no seu direito, mas quanto a mim fez mal. Deu aso a uma enorme especulação, sendo que a maior é que não o quis dizer porque o prognóstico desse tipo de tumor é muito mau. Limitou-se a dizer que ia fazer quimioterapia adjuvante, mas chamando-lhe preventiva, dando a entender não haver ainda metástases. Ninguém faz quimioterapia antes de se saber que já tem um cancro, o que acontece é que, consoante o estádio do tumor e a sua origem, mandam as boas práticas médicas, as chamadas “guidelines”, complementar o acto cirúrgico com quimioterapia. A ser verdade tudo o que foi dito e omitido, na minha modesta opinião, a doente foi operada e fez uma extensa ressecção do cólon por doença inflamatória intestinal (colite ulcerosa?), provavelmente com várias biopsias pré-operatórias sem tumor, e só no estudo exaustivo do intestino retirado se confirmou haver focos de tumor maligno, com um estádio que implicava fazer quimioterapia adjuvante. Especulo? Faço-o baseado em décadas de experiência, partindo do princípio de que foi dita a verdade dos factos. E porque não foi emitido um relatório clinico? Porque tinha de ser assinado pelos cirurgiões implicados e logo se saberia pela especialidade dos mesmos que órgão tinha sido implicado. Se fossem cirurgiões ginecológicos ou abdominais, e mesmo dentro destes qual era a sua sub-especialidade. Ter dito que sofria de cancro é muito vago, existem cancros mais fáceis de transformar em doença crónica e de melhor prognóstico, e outros consoante a origem mais difíceis de controlar. Será que foi por isso que não se foi mais longe na informação? Espero que não, e que esta jovem de 42 anos possa acompanhar e ver crescer os seus filhos e vir a ser ainda Rainha de Inglaterra.
Em relação às notícias de que em Portugal foram encerrados alguns locais onde se tratava cirurgicamente cancro da mama, por não atingirem números que possam garantir qualidade desse tratamento, tenho uma opinião clara. O tratamento do cancro da mama, como de muitos outros cancros, não é apenas cirúrgico, implica equipas multidisciplinares que em conjunto definem uma estratégia global de tratamento, sendo que a cirurgia aparece por vezes no início, e muitas vezes é precedida de outros tratamentos, na maior parte a chamada quimioterapia neo-adjuvante (feita antes da cirurgia). A própria cirurgia do cancro da mama pode ser muito diversa, desde logo na quantidade de mama a extirpar, mais ou menos conservadora, com ou sem apoio imediato de cirurgia plástica, e podendo ou não implicar esvaziamentos dos gânglios linfáticos da axila, consoante informação do chamado gânglio sentinela com o apoio da medicina nuclear. Em 2022, na unidade de Barcelos fizeram-se apenas 3 tratamentos cirúrgicos de cancro da mama. Em outras unidades encerradas os números variaram entre 14 e 40. E todas tinham essas equipas multidisciplinares? E acordos com locais onde se poderiam realizar radioterapias adjuvantes? A funcionarem com protocolos acordados e pré definidos? Uma coisa é certa, para se optimizarem resultados, quer em relação à sobrevida quer em relação a aspectos estéticos, exigem-se números mínimos para tentar garantir experiência e qualidade. Ouvir um cidadão de Barcelos indignado por ser retirada do seu hospital esta modalidade terapêutica fez-me pena. Bastava tê-lo informado da razão dessa decisão, para que ele compreendesse e apoiasse. Admito que 100 casos por ano seja eventualmente um número exagerado, para centros muito longe dos chamados Centros de Referência, não sei como se chegou a esses números, e a CNCR deveria ter sido ouvida, mas estas medidas são necessárias para salvaguardar a qualidade da medicina praticada, e a própria Ordem dos Médicos devia ter uma palavra de total e incondicional apoio. Para o tratamento de doenças raras e ou muito complexas, e nestas muitas são oncológicas, exigem-se casuísticas (números) importantes e abordagens multidisciplinares. Quer no SNS quer na oferta privada. As regras têm de ser iguais para todos, para bem dos doentes portugueses, da sua quantidade e qualidade de vida. Ao meu concidadão de Barcelos, mando um grande abraço, e digo-lhe apenas que a pergunta que lhe fizeram não foi bom jornalismo. Saberia ele que no seu hospital tinham sido apenas tratados 3 doentes em 2022? Um desafio às nossas televisões. Tirem-se uns minutos a longas e repetitivas mesas de comentário sobre política, economia ou futebol. Faça-se uma mesa redonda sobre a necessidade da existência de Centros de Referência para tratamento das doenças raras e/ou complexas em Portugal. Um serviço público necessário, sem preconceitos ideológicos ou partidários, apenas para que os portugueses possam compreender e saber melhor onde devem ser tratados. E perceber que, para bem deles, nem tudo pode e deve ser tratado à porta de casa.
Cirurgião.
Escreve com a antiga ortografia