A pequena batalha de Kursk
Travada no verão de 1943, a Batalha de Kursk foi uma grande vitória soviética sobre os nazis. A liderar o Exército Vermelho estava o marechal Georgy Zhukov, que menos de dois anos depois receberia, em Berlim, a rendição incondicional da Alemanha. Vladimir Putin, cujo pai combateu e foi gravemente ferido na Segunda Guerra Mundial, conhece bem este episódio decisivo do conflito que, na Rússia e noutras ex-repúblicas soviéticas, é conhecido como a Grande Guerra Patriótica. E é, pois, o primeiro a saber que a atual ofensiva ucraniana na província de Kursk, apesar do simbolismo de ser a primeira invasão de território russo desde 1945, não é minimamente comparável com os acontecimentos de há 81 anos, que envolveram cerca de um milhão de soldados alemães e mais de dois milhões de soldados russos. Mas…
Calcula-se que 15 a 20 mil militares ucranianos participam nesta operação militar no sul da Rússia, desencadeada a 6 de agosto, e que apanhou de surpresa Putin e as chefias militares em Moscovo. Mais do que os 1200km2 de território que Kiev diz ter sob controlo na Província de Kursk, abarcando 93 localidades, o impacto dessa ofensiva tem que ver com a tentativa de abalar a confiança dos russos na capacidade de Putin em manter a guerra longe.
Volodymyr Zelensky e os generais ucranianos planearam e executaram esta pequena invasão da Rússia de forma extremamente eficaz e, além de fragilizar a imagem do homem forte do Kremlin, conseguiram enviar a mensagem aos países ocidentais de que a Ucrânia não se dá por vencida, mesmo que os russos continuem a progredir no Donbass e um quinto do território ucraniano continue fora do controlo de Kiev.
Suspeita-se que mais do que avançar em direção a Kursk propriamente dita, os ucranianos procurarão agora entrincheirar-se. Com recurso a mísseis sofisticados de origem ocidental já destruíram algumas pontes, de modo a dificultar a logística russa aquando da inevitável operação de reconquista. Putin deu ordem para, até 1 de outubro, os militares ucranianos serem postos fora do país.
Aqui há a questão do tempo. Putin quer ter a certeza de que, quando as suas tropas avançarem no sul, será para vencer. Só pode ser assim. Em simultâneo, não pretende parar a ofensiva no Donbass para transferir soldados para Kursk.
Já Zelensky procura, no imediato, obrigar Moscovo a aligeirar a pressão sobre a frente militar no leste da Ucrânia, e ambiciona ter alguma moeda de troca quando chegar o momento das negociações com os russos. Discretas, secretas até, estas estariam já a decorrer há algum tempo sob mediação do Qatar, mesmo que desmentidas pelos dois beligerantes.
Há quem diga que a operação ucraniana desfez as hipótese de entendimento, e há quem acredite que, bem pelo contrário, contribui para a necessidade de negociação e põe os lados ucraniano e russo mais próximo de falar de igual para igual. Oficialmente, Kiev exige que se respeitem as suas fronteiras herdadas da era soviética, incluindo a Crimeia que a Rússia anexou em 2014. A exigência formal russa para terminar com a tal “operação especial” que lançou em 2022 é o reconhecimento por Kiev da realidade no terreno, a renúncia à intenção de aderir à NATO, a proteção das minorias russófonas e ainda o fim das sanções ocidentais.
A Rússia é o maior país do mundo. Mesmo após a desintegração da União Soviética, o território governado pelo Kremlin é superior a 17 milhões de km2. Os ucranianos, usando os seus militares mais bem treinados e equipamento entre o mais sofisticado fornecido por americanos, britânicos e países da União Europeia, conseguiram ocupar menos de 0,01% da Rússia. Provavelmente não conseguirão manter esta porção de terra russa, até porque as fragilidades da Rússia não invalidam que esta continue a ter muitos mais meios do que a Ucrânia - meios militares certamente. Mas não deixa de ser extraordinário que esta pequena batalha de Kursk se tenha tornado central no conflito entre Moscovo e Kiev e um teste ao pensamento estratégico tanto de Putin como de Zelensky.
Diretor adjunto do Diário de Notícias