A Oeste tudo de novo: As edições Fantasma

Publicado a
Atualizado a

Carlos Ramos, Álvaro Silveira, Paulo Chagas, Miguel Angel Curiel, uma antologia da poesia Beat, Federico Gallego Ripoll, João Rebocho, Bill Wolak, Mois Benarroch, Yuleisy Cruz Lezacano. Isto é: uma editora de poesia sediada em Peniche – sim, em Peniche -, nessa improvável terra do Oeste, lugar que participa de memórias antigas: Baleal, Atouguia da Baleia, Ferrel… Isto é: uma editora que vive na geografia de certo modo árida desse Oeste onde vivem dois poetas silenciosos, de outrora, cavando a ausência como uma forma de presença (falo de Joaquim Manuel Magalhães e de João Miguel Fernandes Jorge).

A poesia como uma improbabilidade e uma necessidade: as edições Fantasma, chancela do poeta, tradutor e editor Carlos Ramos e que, de há anos, vem publicando poetas portugueses, mas traduzindo poetas cubanos (Yuleisy Cruz Lezcano), ou poetas marroquinos (Mois Benarroch) ou americano-romenos (o caso de Bill Wolak), ou espanhóis (Federico Gallego Ripoll, Miguel Angel Curiel), ou ucranianos (Dmytro Chystiak). Uma editora cujo catálogo revela o bom gosto de Carlos Ramos, a sua sensível e criteriosa concepção da poesia. De entre os vários poetas publicados pelas Edições Fantasma, alguns são, na verdade, descobertas inesquecíveis e que emprestam a estes dias de chumbo e de calor uma urgentíssima sensação de leveza e de beleza. Não é verdade que, em face do mundo em que vivemos, abertas que estão as mais diversas caixas das mais diversas Pandoras, não são as artes – e em especial a poesia como arte de linguagem, de construção de imagens – verdadeiras botijas de oxigénio para respirarmos melhor?

Para mim não há dúvidas: editoras como esta de Carlos Ramos, operando nos corredores mais desconhecidos do mundo do livro, não contaminadas pela lógica de mercado; nestas editoras é que nos confrontamos com algo raro em muita poesia: o saber rítmico, o poder da imaginação. Dos poetas que elenquei há pouco, três há que me surpreenderam. Partilharei com os leitores deste Directo à Leitura, versos, imagens, palavras, ficções que neles encontramos. Mar de Sefarad, de Mois Benarroch, em tradução dupla de Carlos Ramos e de Pedro Paixão, é um belíssimo, envolvente e emotivo livro de poemas. Publicado em 2023 para a nossa língua, que poesia é esta? Talvez uma poesia do espanto, dum sujeito em peregrinação por tempos e espaços que conflituam com uma biografia. Benarroch nasceu em Tetuán, mas foi aos 13 anos para Israel e vive em Jerusalém. Publica desde 1979, escreve poesia em inglês, hebraico e, finalmente, em castelhano, pois que, antes de ir para Israel, Espanha foi a sua casa. Edita a revista Marot e é um autor premiado. Estes poemas do belo livro Mar de Sefarad nascem dessa peregrinação por geografias físicas e afectivas.

O sujeito dos textos, falando na 1ª pessoa, é um eu para quem a linguagem se trabalha entre dois tempos: o passado insepulto e um futuro improvável. A poesia existe no meio: “Tarde de mais para procurar/ as razões/ demasiado tarde/ para procurar as raízes/ dos problemas/ tarde mais para tentar / uma nova solução/ demasiado tarde para/ morrer” (p.28). A construção rítmica, a associação entre a perseguição dum amor infinito com a certeza de que só poeticamente esse amor existe, a abstração cruzando-se com o concreto, o tema do exílio com o anseio de uma liberdade e a tudo isto somando-se uma capacidade de síntese que é poder metafórico, ironia, vibrante auscultação dos enigmas de estar vivo, isto faz deste poeta um grande poeta entre nós, posto que a tradução seja, em si mesma, uma adopção para português de uma poética estrangeira. Sendo de outra latitude, esta tradução faz o que se exige: este poeta, nós lemo-lo como se fosse nosso. E nosso porque há, repito, imagens e uma respiração originalíssimas, um para-dramatismo que coloca entre o eu e o tu destinatário aquele enigma que produz a grande poesia. Três exemplos: “Ela olha com essa cara/ Sentada ao lado daquele que a beija/ dizendo-me/ Estás a ver/ Com quem estou/ Ele ama-me, eu digo-lhe que o amo” (p.49); “Pesam-me os anos. São uma mochila […]/ as cervicais da minha solidão” (p.60); “prefiro estar longe de ti/ que perto de ninguém” (p.78); “Perdi muitas mãos/ E as duas que me restam/ São para te abraçar” (p.86); “Escolher uma dor e outra dor é ser adulto” (p.73); “De certa forma/ incerta/ Espero-te/ Minha incerta/ Numa estação onde/ Tenho frio” (p.96). Amor, desencontro e desencanto, ou um grau de fazer linguagem como lemos nesse portentoso poema, “Cavalos”: “E/ virão, virão a galope […]/ os cavalos azuis, os cavalos celestes/ esses serão os piores/ acabarão com os prédios de duzentos andares/ destruirão tanques e aviões/ […]// virão mais e mais cavalos/ de lugar nenhum/ cavalos que aparecem de repente/ em frente de pessoas que caminham pelas ruas/ e tu, na cama, olhar-me-ás/ desesperada, esperando o meu resgate/ olhar-te-ei e de repente/ transformar-me-ei/ num cavalo vermelho” (p.22).

A questão fundamental que muitas vezes tenho colocado neste Directo à Leitura, pensadas estas páginas para fazer pedagogia, para, no fundo, imprimir no leitor que as lê um certo movimento vital, um quê de energia e de imaginação nestes nossos dias “sórdidos, caninos, policiais” (escreveu-o o nosso Alexandre O’Neill), é esta: perante a indústria da morte e em face da condição angustiada do homem, onde encontraremos nós algum jardim, algum lugar de reencontro com a nossa liberdade? António Ramos Rosa no seu inultrapassável livro de ensaio Poesia Liberdade Livre refere-se à virtualidade criadora da poesia. Nós procuramos – como Carlos Ramos, o poeta e editor, o magnífico tradutor – uma significação, poesia que nos aponte uma direcção onde o “puro futuro” não pode ser o desta continuada estrutura social feita de exploração, sede do dinheiro. Não, a poesia nunca falou de idealidades ou de impossibilidades. Na sua estranheza, na sua ambiguidade, na sua anulação de fronteiras, quem lê pode beber de uma água purificada: o poema é um dizer inaugurador, um artefacto que exprime a luta da vontade criadora contra as forças que oprimem o homem e o querem monolítico, inexpressivo, maquinal.

Por isso dois outros poetas desta excelente editora do Oeste: O Mar na Pedra, do ucraniano Dmytro Chystiak, reunindo dez anos de poesia (2008-2018). Poeta e crítico literário, trabalha no Centro Europeu de Tradução de Bruxelas e é editor de chancelas ucranianas e francesas. Na sua poesia (traduzida por Carlos Ramos e Maria do Sameiro Barroso), em edição bilingue, há uma força contida – poemas breves – e uma força de imagem que alguma coisa deve ao surrealismo francês, a Paul Éluard, porventura: “Trago-te estes lilases da noite/ Que os meus mortos plantaram:/ Quando a chuva de ouro nos unir/ Um sonho ardente conduzir-nos-á/ Misturando o instante e a mudança./ Os meus lilases não mais retêm as suas lágrimas” (p.9). O título é um achado: o mar na pedra: o tempo batendo, a memória da poesia como um mar encapelado, ou tranquilo. Caos calmo, a poesia deste autor: “Aquele grito no azul esverdeado.// Os veleiros zarpam./ Os seus lábios demasiado áridos secam/ Ardentes de angústia,/ A chuva dos anos silenciosos/ Ergue-se entre nós,/ Como se fosse uma lágrima.” (p.43). Versos longos, outros curtos, uma prosa reforçada pelo poder da evocação justapõe planos, estados de alma, numa indefinição que é profecia, uma forma de projectar num amanhã uma imagem do que virá, apocalíptico, bíblico: “Eles cortam a oliveira,/ A rede de pedras rompeu-se,/ A serpente aquece-se/ No fogo das torrentes […]/ O galo engolirá o absinto/ O leão cairá no fluxo,/ O silencioso mausoléu/ Beberá o sangue dos assassinos/ O último suspiro mórbido/ Vai acender a tocha:/ Jerusalém está a caminho,/ Atravessará o mar/ Até à Porta do Ouro” (p.63).

Um terceiro livro desta colecção das Edições Fantasma e que é, a meu ver, inescapável, é de Bill Wolak. Dante Maffia, na contracapa informa: “A poesia do amor é muitas vezes manchada pelas muitas vozes que falam fatalmente de lugares-comuns e de repetições inacessíveis.” Trata-se de uma voz de trémulas experiências: este poeta é um clássico influenciado pela geração Beat. Independente, Bill Wolak oferece-nos essa mágica luz dos seus poemas: Where the light ends/ Onde a Luz Termina, em tradução de Carlos Ramos e de Cobramor. Deixo-vos com um poema deste autor, mas com um convite essencial: que descubram – indo a Peniche ou a uma livraria de Lisboa (a Snob, ou a Poesia Incompleta) – esta chancela, as Edições Fantasma. Eis o poema, essa possibilidade de uma nova percepção da realidade: “Quero o que o fogo anseia/ para sempre tudo manter/ para queimar através da aparência/ como chamas quebrando um espelho// Eu quero o que o verão promete/ em brisas perfumadas de madressilva,/ jasmim e flores de rododendro/ quando o calor acelera os sentidos/ durante as noites de amor inesquecível/ como poemas em que tu / cinges cada linha” (p.31). A Oeste, pois, tudo de novo.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt